segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Estamos no fim do mundo

1. Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, ainda por cima num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

2. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto. Futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a definitiva.
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, paralela, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, faziam-se passar por bufos da Pide, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros.
Nos restaurantes, a mesma merda. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a gereralização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes...
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas gastam todas as suas opiniões na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do 4-1-3-2 de Jorge Jesus, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós: as pessoas estão vazias. Já disseram tudo e não era nada...

Atenção! As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via de vez em quando...

3. Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emoticons. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.

P.S. - Não sei explicar porquê, em Fafe o fim do mundo era feminino. Isto é, dizia-se a fim do mundo...

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