Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com
gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de
conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E
pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos
ribombos do grand finale,
para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda
do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham
bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o
coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas
também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os
apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do
que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos,
fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito.
Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para
todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o
material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o
convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois
dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e
fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum!
pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem
misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas
intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez,
num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de
defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso
interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de
apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que,
objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também
não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é
um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido
dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo,
faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na
concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os
apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos
sobreviventes podem ainda ser vistos numa festa ou romaria perto de si,
em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na
orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação
da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais
antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo
atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o
último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais
tempo...
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Setembro de 2011. Entretanto a correlação de forças entre as duas bandas fafenses já não será, porventura, a que era, mas isso também não importa para aqui. O que importa é: hoje, 1 de Setembro, é Dia Nacional das Bandas Filarmónicas.
Sem comentários:
Enviar um comentário