A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou
apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua propriamente ditos, já a
contar com o Roger Moore na televisão a preto e branco do café Peludo.
Evidentemente que, para os devidos e legais efeitos, a minha rua tinha
nome de data: Largo 9 de Abril, curiosamente à moda do Porto, onde 9 de
Abril costuma dizer-se Arca d'Água. Eu, que até sabia da Batalha de La
Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito
tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os
doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar
quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros
Voluntários. E fará um pouco mais de sentido chamar-lhe assim, embora
não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em
quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.
Fosse como fosse, hoje, dia 9 de Abril, é Dia do Santo Velho. Portanto:
O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao
lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos
remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres iam trabalhar para a
Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, Fábrica assim com maiúscula, por
antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e
tecidos.
A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o
que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que
ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe
fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista,
como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro
números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que
intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um
território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma
irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não.
A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então
cientificamente plano, a descair para o Picotalho e delimitado em cima
pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as
Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa
brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer
missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se
reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois
para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e
descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias
e um cilindro. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita.
Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O
Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão.
Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara, tínhamos o ceguinho das
quartas-feiras e a Mocha com sardinhas, fanecas e chucharros,
indesmentíveis chucharros.
Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um
sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas
mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o
"Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já
era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu
plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira
tília. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de
cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos padeira,
azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos.
Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Queimávamos o Pai das
Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos
o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr.
António e nas lavras do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de
vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o
Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo,
encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro
falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José
Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. O nosso
Santo António era de arromba, já aqui contei. Botávamos altifalantes,
"Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non
Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê.
Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes
envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás,
adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo
comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e
envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo
comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade: íamos em
bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia
enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e
metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o
mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.
Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de
terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com
semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento
proibido. E nós morremos gota a gota, atropelados pelo vagar do tempo.
P.S. - Hoje, 9 de Abril, é Dia do Combatente. Por causa da Batalha de La Lys. E da minha rua.
quinta-feira, 8 de abril de 2021
Da minha rua via-se o mundo
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