- Tcharam! Feliz Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa!... (apitos, confetes e serpentinas)
- Boa noite.
- É dia, pai. Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa, pai! Praticamente Dia do Pai, pai! Parabéns!
- Igualmente. Você quem é?
- Eu? Então não sabe quem eu sou, pai?
- Sei.
- Quem é que eu sou, pai?
- Não sei.
- Sou o seu filho, pai!
- Que horas são?
- Sou o seu filho, pai. Lembra-se? O Tó! Tó!!
- Totó?
- O Tó, pai, o seu filho...
- Eu não tenho filhos...
- Tem, pai. Eu sou o Tó!
- Tó?
- António, pai. António!
- O meu filho chamava-se António.
- Sou eu, pai. Sou o António...
- Que horas são?
- E esta é a Lu, pai, a minha mulher, a sua nora.
- Agora vou dormir.
- Olhe para a sua nora, porra! É todos os anos a mesma merda, pai...
- Que horas são?
- Ó pai, olhe para os seus netos, caralho! Ó Bi, dá o desenho ao bu.
- Boa noite.
- É dia, pai, são onze da manhã.
- Onde é que eu estou?
- Está no lar, pai.
- No nosso lar?
- No seu lar, pai. Já lhe expliquei mil vezes que eu e a Lu não podemos, temos a nossa vida, e a vida é assim. Mas este lar é bom. Custa-nos a sua reforma quase toda, mas é muito bom...
- És o António?
- Sou, pai. Sou o António.
- Chama a tua mãe, que eu preciso de urinar.
- A mãe já morreu, pai. Quantas vezes já lhe disse? A mãe morreu...
- Quero ir para casa.
- O pai está aqui muito bem, não está, Lu?
(ouve-se um soluço)
- Está a chorar porquê, pai?
- A mãe morreu...
- Foi há vinte anos, pai. Há vinte anos que não saímos disto, sempre a mesma choradeira. Deixe lá a mãe em paz. Hoje é Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa, pai! Praticamente Dia do Pai, pai!...
- A mãe morreu...
- Nunca se pode falar consigo, pai.
- Boa noite.
- Estraga sempre o ambiente, pai.
- Que horas são?
- Olhe, nós vamos mas é embora, pai. Eu e a Lu temos mais que fazer e os meninos precisam de apanhar ar. Para o ano voltamos cá, se Deus quiser, mas agora vamos, pai...
- Ide, ide, meus filhos. Da puta. Ide chamar pai a outro... (cai o pano)
O Menino Jesus morreu sozinho. Tinha 84 anos.
Morreu o Menino Jesus. Tinha 84 anos. Era Maio de 2012. O corpo foi encontrado por acaso, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolvera fechar-se ninguém soube dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem da gramática que lhes deram, suspeitam que o óbito terá ocorrido pelo menos cinco dias antes da macabra descoberta. Azar do caraças: dois dias a mais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos? O que apanhava, em Nevogilde, o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, durante mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passo lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho. Já basta o que basta. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais do dia seguinte decerto deram a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.
"Alfândega da Fé. Idoso morreu sozinho em casa com hipotermia. Morreu Manuel Escobar, 68 anos, deficiente motor, residente em Pombal, Alfândega da Fé, que há vários meses vinha pedindo a institucionalização num lar de idosos. Perdeu a vida, na sexta-feira, após ter dado entrada no hospital em situação de hipotermia."
A notícia era do JN, em Dezembro de 2011. Hipotermia quer dizer frio, morrer em situação de hipotermia quer dizer morrer de frio. Institucionalização quer dizer internamento, o senhor Manuel Escobar precisava de quem tomasse conta dele. Sozinho em casa quer dizer abandonado. Perdeu a vida quer dizer morreu. Isto é: o senhor Manuel Escobar, 68 anos, deficiente motor (como se fosse profissão), morreu de frio, abandonado por todos, porque ninguém ligou aos seus insistentes pedidos para ser internado num lar de idosos. Ninguém ligou à sua urgência de vida. Todos, os que sabiam e os que não sabíamos da sua existência desgraçada, cagámos nela e limpamos as mãos à parede. Evidentemente, graças ao jargão e eufemismo jornalísticos a coisa não é assim tão grave...
Idosos e ilegais
Portugal tinha um milhão de pessoas com 75 anos ou mais, nos finais de 2011. A Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso de Idosos (ALI) revelava então que havia apenas 1.863 lares licenciados. O resto eram clandestinos, num negócio paralelo que florescia e floresce porque, vá lá perceber-se porquê, as famílias procuram sítios mais baratos para encaixotarem os seus velhos à espera da morte. Pelas contas da ALI, que representava 200 lares com fins lucrativos, havia no nosso país mais de mil lares ilegais. A ALI queixava-se de "concorrência desleal" e eu vou ali e já venho se não é realmente só isso que os preocupa, o dinheiro. Lá haver condições ou não para acolher com dignidade os hóspedes, já são outros quinhentos.
Creio, no entanto, que o assunto tende a resolver-se quase por ele próprio. Portugal vai deixar de ter velhos. Morreremos todos de fome e de doença antes de lá chegarmos, sem reforma nem dignidade. Os governos e os patrões já desistiram de quem tem mais de 50 anos. E o País no seu todo, egoísta e salve-se quem puder, vai certamente fazer o mesmo. Descansemos em paz!
P.S. - Textos publicados originalmente entre Dezembro de 2011 e Março de 2015. Hoje, 15 de Junho, é Dia Mundial da Consciencialização da Violência contra a Pessoa Idosa.
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