Quase morri para salvar um bebé que não era
Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos  no quentinho do cinema. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e era um  tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro  em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela  força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se  faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único impulso de  heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, no  YouTube, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do 10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e a Santiago, meu padrinho e pretector, falta-me o ar de repente, é o  coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como  varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche  de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos  espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho, e o pai berra Olha o  carrinho, e dá mais uma puxa no paivante.
 O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O  carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos  soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual  criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à  merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e  riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei  para o carrinho que mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram  quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro  filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.  
Nota final. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925. 
Criança estrangeira é outra categoria! 
A criança chorava com evidente entusiasmo. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões.
 Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.
 (Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)
 Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
 É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.  
O neném que era sedentário contra a vontade da mãe
Estacionaram o carro junto à praia. A mulher saiu, morena e roliça, num refrescante vestido branco comprido à mãe-de-santo. O homem foi ao banco de trás buscar o filho e pousou-o no chão. O miúdo não gostou. Era ainda um bebezinho dos primeiros passos que quase não se tinha em pé. Se calhar por isso, sentou-se no empedrado, abriu as goelas e chorou o seu protesto. A mãe procurou por quem passava, era eu, e ralhou pedagógica e mansamente ao petiz, naquele português doce do Brasil: - Rodinei Uaxinton, chega! Que sedentarismo, minino!...
P.S. - Hoje, 1 de Junho, é Dia Mundial da Criança. E também é Dia Mundial do Leite. Isto realmente anda tudo ligado.
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