Começarei por contar honestamente os motivos por que, durante as três últimas semanas, abandonei este caderno de apontamentos. São dois, e o segundo é fácil de dizer: foram as velhas. Mas o primeiro... ainda há pouco eu hesitava em confessá-lo: foi a moça.
Depois da Quarta-feira de Cinzas veio-me uma aura romântica que me pôs meio lunático, trazendo-me dias agitados. Presumivelmente curado da moléstia, posso contar as coisas tal e qual se passaram. Como na noite de Carnaval, e já sem a desculpa do álcool e do éter, voltei, de novo, a essa a que vou chamando Arabela, por lhe ignorar o nome de batismo e porque, afinal, o que lhe dei se me afigura o adequado. Pus-me a procurá-la quase com aflição e, perdendo a noção do ridículo, confiei o episódio e minha desordem sentimental ao Silviano. Felizmente (e com certeza por solidariedade, visto que anda em maré análoga), ele não fez troça. Pelo contrário, ouviu, sério, a confidência.
Podem rir-se de mim, mas os namorados me compreenderão: amei, como se se tratasse de um ser real, aquilo que não passava de uma criação do espírito. A vida não se conforma com o vazio, e a imagem da moça encheu-me os dias.
Tive noites difíceis, bebi algumas vezes e andei como vagabundo pelas ruas. Até o chefe da Seção notou minha inquietude e fez-me assinar um requerimento de férias: "O senhor está precisando de repouso e deve aproveitar a ocasião. O Secretário está fora, e temos pouco serviço." (Na verdade nunca tivemos serviço, e jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção do Fomento...). Em tal estado de espírito, é fácil de ver que eu não poderia retomar estas notas.
"O Amanuense Belmiro", Cyro dos Anjos
(Cyro dos Anjos nasceu no dia 5 de Outubro de 1906. Morreu em 1994.)
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