quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Manuel da Fonseca 3

Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.
O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina, fraco e repontão. O Estroina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os den­tes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavra­dor de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.
Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Ace­navam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua sombra, batiam-se os valentes: junto do tronco de uma faia caiu morto António Valmorim, temido pelos ho­mens e amado pelas mulheres.
Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à fal­ta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. O tempo passava, e essa qualquer coisa inventada vinha a ser a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.

"O Fogo e as Cinzas", Manuel da Fonseca

(Manuel da Fonseca nasceu no dia 15 de Outubro de 1911. Morreu em 1993.)

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