domingo, 4 de outubro de 2015

Cyro dos Anjos 2

Outro evento, este decisivo, concorreu para que, após a derrota dos nossos candidatos, eu não me deixasse contagiar da exasperação reinante e me tornasse menos propenso, ainda, à beligerância: em viagem a Santana, encontrei, no trem, a menina do Sobrado.
A menina do Sobrado... Agora, mocinha. Dezessete anos, parecia ter quatorze. O trem cortava o tabuleiro, e o sol, nascendo, punha dourados de capela antiga no esmaecido azul da serra de Diamantina. Mas o que vi, na verdade, e nunca esqueci, foi outro dourado, o dos cabelos dela, também de ouro velho, também de capela antiga, e de imagens da Virgem.
Viera, com três companheiras, passar o carnaval em Belo Horizonte, e regressava à terra. E eu lá ia, de passeio. Não havíamos conseguido leito. Varou-se a noite a prosear: eu, adiante, num banco, junto da mais velha, que tomava conta da turma; ela, no fundo do carro, com as duas outras. Por isso e por causa do mortiço da luz, só lhe prestei atenção quando amanheceu o dia - e um raio de sol horizontal, metendo-se pela fresta da janela, veio dourar-lhe a face. A carinha sarapintada de sardas, os olhos travessos, o sorriso de covinhas, um alumbramento!
"É a noiva! pensei, maravilhado. - Essa aí não me escapa!"
Cansado de andar atrás de moças, doido para casar, sentia-me esponsalício como uma laranjeira carregada de flores. Os don-juans se fatigam. Mormente os malsucedidos, que se fatigam cedo. Como poderia sustentar família, eu não sabia. Mas queria casa, mulher.

"A Menina do Sobrado", Cyro dos Anjos 

(Cyro dos Anjos nasceu no dia 5 de Outubro de 1906. Morreu em 1994.) 

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