Na Terra do Fogo as coisas estão frias
Conforme telegrama publicado, há dias, em um dos nossos melhores jornais, há uma grande carência de mulheres na Terra do Fogo. Semelhante fato, coisa que não acontece com frequência, felizmente, constitui - não há sombra de dúvida - uma calamidade para um povo. Pudesse alguém interrogar os colonos portugueses das primeiras expedições que vieram ao Brasil... Mas, se vão longe esses tempos indecisos da Idade Média, ainda se não apagaram do espírito de alguns cariocas os dias agitados de 93, o período em que a República lutava contra a fúria da revolução. Houve então aqui um considerável decrescimento do número das mulheres, o que determinou, segundo a opinião do dr. Pires de Almeida, profunda corrupção nos costumes da cidade. A judiciosa asserção do ilustre clínico leva a gente a pensar que os habitantes da Terra do Fogo não devem estar em situação muito agradável. Mas quais seriam os motivos de haverem as gentis representantes do sexo frágil abandonado essa ilha tão fria que tem um nome tão quente? Terá havido por lá alguma extraordinária epidemia que se haja limitado a atacar apenas a constituição delicada dessas encantadoras criaturas? Terão os gelos das proximidades do Polo Sul arrefecido o caráter de seus compatriotas a ponto de, sentindo-se desprezadas, terem as pobrezinhas a necessidade de bater a linda plumagem? Ou continuarão os homens de lá com aquele hábito de que fala Darwin - o péssimo costume de, em tempo de penúria, comer as mulheres, porque as consideram inferiores aos animais? Se esta última hipótese é verdadeira, devem agora os habitantes da Terra do Fogo estar arrependidos de sua voracidade, porque se privaram, por não haverem sido mais sóbrios, do único meio que tinham de perpetuar o alimento das ocasiões difíceis. Mas não se pode atinar com a causa do desaparecimento das pobres flores da vida na grande ilha do sul. E a gente vê, pela tristeza do telegrama, que os homens estão angustiados, estão aflitos, vítimas de uma viuvez geral. Mas caso é para uma pessoa pôr-se a pensar tristemente nas grandes desigualdades que há neste mundo. Desapareceram as mulheres ali, e aqui promanam mulheres em quantidade. Parece até uma injustiça. Bem se está vendo que os bens da terra não foram feitos para todos...
Conforme telegrama publicado, há dias, em um dos nossos melhores jornais, há uma grande carência de mulheres na Terra do Fogo. Semelhante fato, coisa que não acontece com frequência, felizmente, constitui - não há sombra de dúvida - uma calamidade para um povo. Pudesse alguém interrogar os colonos portugueses das primeiras expedições que vieram ao Brasil... Mas, se vão longe esses tempos indecisos da Idade Média, ainda se não apagaram do espírito de alguns cariocas os dias agitados de 93, o período em que a República lutava contra a fúria da revolução. Houve então aqui um considerável decrescimento do número das mulheres, o que determinou, segundo a opinião do dr. Pires de Almeida, profunda corrupção nos costumes da cidade. A judiciosa asserção do ilustre clínico leva a gente a pensar que os habitantes da Terra do Fogo não devem estar em situação muito agradável. Mas quais seriam os motivos de haverem as gentis representantes do sexo frágil abandonado essa ilha tão fria que tem um nome tão quente? Terá havido por lá alguma extraordinária epidemia que se haja limitado a atacar apenas a constituição delicada dessas encantadoras criaturas? Terão os gelos das proximidades do Polo Sul arrefecido o caráter de seus compatriotas a ponto de, sentindo-se desprezadas, terem as pobrezinhas a necessidade de bater a linda plumagem? Ou continuarão os homens de lá com aquele hábito de que fala Darwin - o péssimo costume de, em tempo de penúria, comer as mulheres, porque as consideram inferiores aos animais? Se esta última hipótese é verdadeira, devem agora os habitantes da Terra do Fogo estar arrependidos de sua voracidade, porque se privaram, por não haverem sido mais sóbrios, do único meio que tinham de perpetuar o alimento das ocasiões difíceis. Mas não se pode atinar com a causa do desaparecimento das pobres flores da vida na grande ilha do sul. E a gente vê, pela tristeza do telegrama, que os homens estão angustiados, estão aflitos, vítimas de uma viuvez geral. Mas caso é para uma pessoa pôr-se a pensar tristemente nas grandes desigualdades que há neste mundo. Desapareceram as mulheres ali, e aqui promanam mulheres em quantidade. Parece até uma injustiça. Bem se está vendo que os bens da terra não foram feitos para todos...
"Garranchos", Graciliano Ramos
(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)
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