sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Lindanor Celina

Morávamos no Buritizal quando meu pai, num dos seus arrancos da mocidade, se mudou para Itaiara. Mamãe nunca lhe perdoou essa presepada que considerou funesta em nossa vida. Falava constante daquela viagem em noite de breu, deixando, assim tão brusco, o nosso Buritizal para um incerto lugar.
Não me dei conta da mudança.
Quando abri os olhos para o mundo, me vi naquela casa de porta e janela, na rua das Pedras. A mais remota lembrança, minha, foi a daquele dia de procissão. [...]
Cada mês, aquele dia de juízo, mamãe me agarrando à força, o copo de mamona dissolvida em chá de cidreira na mão: "engula, engula, senão apanha!" Eu apanhava, esbravejava, escorregava-me dos braços dela, rolando pelo chão, mas engolir... Papai se aperreava, sofria comigo, um dia falou que aquilo era uma barbaridade, de ora em diante quem iria me dar o purgante era ele. Mamãe zombou, sarcástica: "Pois dou um doce, contigo mesmo é que ela faz o que quer". Com alma nova agarrei-me a meu pai, prometi, jurei, com ele tomaria, todinha, aquela coisa horrível.

"Menina que Vem de Itaiara", Lindanor Celina

(Lindanor Celina nasceu no dia 21 de Outubro de 1917. Morreu em 2003.)

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