Devo
andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que
olham para mim na rua, e eu não estava habituado a que me vissem. Sempre
achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui durante
toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque
senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Dou um exemplo, por
exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer
desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, e a
verdade é que nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era
como se eu não existisse, mesmo com o pirilau ao léu. De acordo com as
detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e
sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes,
talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e
só abandonei a modalidade por indicação médica. O médico da caixa sempre
me chamou Sr. Serafim porque nunca tomou razoável sentido a quem eu
era. Eu próprio quantas e quantas vezes passei por mim sem me conhecer
de lado nenhum, não serei portanto o primeiro nem o último a atirar a
primeira ou a derradeira pedra à autoridade distraída ou ao serviço
nacional de saúde relapso, respectivamente. Serei, por uma questão de
princípio, o do meio.
Mas
ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço
imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas
há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana
com hífenes e eu ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto
intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o
dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso
hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui
ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao
espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde
1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901,
por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui
ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com
esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com
um tipo vagamente parecido comigo, e comecei a pensar: já vi esta cara
em algum lado. Será isso?
P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Dezembro de 2014.
sábado, 3 de julho de 2021
A minha fase nudista
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