quarta-feira, 9 de junho de 2021

Que nós bem, graças a Deus...

Foto Tarregeno!

Fernando Pessoa inventou e patenteou o aerograma. Exactamente esse Fernando Pessoa, o da "Mensagem" e dos heterónimos - se não sabiam, ficam a saber. O aerograma era uma carta sem envelope e andava de avião. Escrevo era e andava porque não sei se ainda há aerogramas. Se há, são fáceis de reconhecer: os aerogramas são cartas levezinhas e contorcionistas que se dobram e fecham sobre si mesmas. É procurar nos circos.
O aerograma foi um enorme sucesso durante a Guerra Colonial. Era o meio de comunicação preferido entre as famílias cá na então chamada metrópole e os militares enviados lá para o então chamado Ultramar, para o campo de batalha do regime. O aerograma matava saudades entre Portugal e África. Mas também inventava amores, alimentava namoros, alcovitava casamentos. Contava histórias.
Em Fafe, os aerogramas eram vendidos no palacete do Grémio da Lavoura. Entrava-se pela porta das traseiras, e está certo, porque a guerra era uma vergonha. Eu ia comprar aerogramas para a Mila Tripa, que se tornara madrinha de guerra do soldado Valentim que eu não conhecia. Nem ela. A Mila trabalhava na Fábrica Alvorada e era como se morasse connosco, era da família a bem dizer, uma espécie de tia e irmã mais velha, mulher extraordinária que o tempo me obrigou a admirar e respeitar cada vez mais.
Os aerogramas eram oficialmente grátis e já não me lembro quanto é que custavam. Que se segue? Aerograma para lá, aerograma para cá, fotografia para cá, fotografia para lá, e poupando nos pormenores, a Mila e o Valentim passaram naturalmente a namorados e noivaram por correspondência. O soldado Valentim deixou as pernas na guerra, mas voltou homem inteiro e bom. Ele e a Mila casaram. E foi um final feliz.

Noutros casos, não. Às vezes os aerogramas não vinham. Chegava um telegrama e a seguir um caixão. Vi disso em Fafe naqueles anos cinzentos. Apesar da meninice, vivi-o e senti-o profundamente. Vezes de mais. Trinta e sete militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar. O funeral do Zeca Lopes - que era dos nossos, da nossa rua - marcou-me para toda a vida. Creio que há coisa de 25 anos escrevi para a rádio uma crónica a pretexto deste episódio que me persegue, mas não sei dela e tenho pena. Porque, por mais que doa, é preciso não esquecer.

Leio que, após obras de recuperação, o palacete do Grémio da Lavoura (o dos aerogramas para a guerra) vai ser hoje pomposamente inaugurado como novo edifício do Arquivo Municipal, coisa em grande. E isso é bom. De certeza que aquela parte da nossa memória e da História também lá tem reservado o seu cantinho. De certeza que tem. Ou não terá?

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Outubro de 2013, assinalando a inauguração do Arquivo Municipal de Fafe. Hoje, 9 de Junho, é Dia Internacional dos Arquivos.

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