terça-feira, 8 de junho de 2021

Cheirava-lhes a cadáver...

Foto Tarrenego!

Em 1938 escrevia-se desta maneira nos jornais portugueses:

António von Doellinger, sargento reformado do Exército Colonial, foi levado a enterrar.
Na câmara ardente, ao redor dum caixão de quatro tábuas singelas, os seus filhos, crianças tamaninas, choram.
A mais inocente e novinha de todas desvia um lenço sedalino que cobre o rosto esverdeado do defunto. O cadáver está ainda morno, exalando um cheiro canfórico a denunciar a decomposição deletéria que embriaga os abutres e as corujas. O olhar, derramado, vítreo, tem os estigmas reveladores dum horrível sofrimento moral, adivinhando-se que, daquele corpo macerado, foi o coração, alanceado pela dor cruciante da despedida à orfandade, o derradeiro órgão a morrer.
E o lenço de prateada seda cobre de novo os lábios descarnados do pobre Doellinger.
Tuberculizara. Passara privações. Desde que a doença entrara naquele tugúrio, a Conferência de São Vicente de Paulo, de sinistra nomeada, ofertou socorro ao Doellinger. Impunha, porém, uma condição: o doente devia confessar-se, devia confortar-se com os sacramentos da Igreja Católica. Não era penosa a exigência... Um tuberculoso nada adianta nem atrasa, em tal estado, engolindo a hóstia consagrada - um pedaço de obreia amassada com saliva de sacristão.
António von Doellinger, contudo, tem escrúpulos, só porque era anticlerical.
Mas um padre insistia - e, aguardando o momento desejado, quando o doente entrava no estertor da agonia dolorosa, abeirou-se-lhe do leito frio, vestindo de saia negra, na noite negra, como a morte negra que rondava à cabeceira do tuberculoso.
Doellinger recusou ainda nobremente.
Mas era necessário dizer à estupidez do indígena crédulo, fanático e supersticioso, que o ateu implorou, na hora derradeira, na hora do delírio, da alucinação, da inconsciência, o perdão de Deus e a piedade da Santa Madre Igreja. Ainda o sargento Doellinger, estóico ante a morte que tantas vezes lhe fora companheira na inóspita África, quando lutava nas fileiras, teve um gesto grandioso, heróico e teatral, bradando:
- "Não preciso da Igreja, não preciso do perdão de Deus... Não sou um criminoso..."
O padre teria sentido um arrepio de medo, um estremecimento de consciência - e largou a vítima inofensiva.
E, ao nascer da aurora, um sino dobrou, plangente, a finados!
A consciência alheia, as ideias dos nossos semelhantes são, para a Igreja Católica, coisas sem sentido.
O que é preciso, para maior glória de Deus, é que os adversários do catolicismo se arrependam, na hora derradeira, na hora suprema, quando o espírito vacila, quando o corpo arrefece ao contacto do gelo da morte, quando o indivíduo está já em estado de inconsciência, de irresponsabilidade, quando entra no delírio, na demência! Então a vítima pode ceder, porque costuma fraquejar ante o fantasma sinistro que gargalha na ronda nocturna.
O cheiro a cadáver embriaga e consola os abutres que começam a grasnar, sedentos de sangue, ávidos de carnagem dos corpos pútridos!

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2012. Este texto, com o título "Cheirava-lhes a cadáver...", foi escrito, muito provavelmente, pelo jornalista e resistente antifascista fafense Manuel Teixeira, então proprietário e director do semanário republicano O Combate. José Manuel Teixeira da Silva e Castro (1906-1980) era irmão do também jornalista (António) Teixeira e Castro (1928-2004), com quem acamaradei no Primeiro de Janeiro. O Combate, fundado em 1930, teve vida atribulada e efémera. Foi fechado definitivamente pela Censura em 1941. Há anos que guardo religiosamente a reprodução fotográfica da primeira página deste número, que me foi revelado pelo Sr. Vale do Arquivo do Janeiro. Copiei a prosa com recurso a lupa e não garanto isenção de pequenos erros na transcrição. Até da data não tenho a certeza: mas se não é de 1938, anda por lá perto.
Visito-o amiúde. Leio e releio, e cada vez fico mais desconfiado de mim. Com um antepassado da marca deste sargento von Doellinger, donde raio é que me vem a costela sacrista?

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