sábado, 2 de maio de 2020

Mãe só há uma, e é para mim!

Foto Hernâni Von Doellinger

Alexandrina
Tenho na ideia escrever um livro sobre a minha mãe. E sei que, ao contrário do que é uso, são muito poucas as pessoas que merecem que se lhes escreva um livro sobre. Mas a minha mãe é diferente, justifica, é uma mulher extraordinária, no sentido literal do termo, e não por ser minha mãe. Nesta história, eu sou o menos.
Eu ia agora escrever que a minha mãe teve uma infância muito difícil, mas dei fé a tempo de que estaria a mentir: a minha mãe não teve infância, não foi à escola, a vida mandou-a para criada de servir aos sete anos de idade. A minha mãe ficou viúva e com quatro filhos aos 33 anos. Tempo do fascismo - sim, do fascismo -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa. A minha mãe era a Viúva da Bomba. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro, à sua imagem e semelhança, as pessoas que somos, vertebrados e moralmente limpos, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que sou um bocado palhaço.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muita muita canseira, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos para fora, e lágrimas que eu bem as via, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a irem ainda crianças para o trabalho para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". Sermos alguém na vida em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché. Evidentemente, só eu dei para o torto.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, metiam-se empenhos para que ela aceitasse as crianças. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", que os netos também lhe passaram pelas mãos. A querida Guidinha, casada e também mãe, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio". E eu gosto. Na Rua do Assento, na casinha de pedra - minúscula, imensa e mágica -, uma casa que então podia ser a dos sete anões ou a do João do pé de feijão, conforme, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Olhava por eles para olhar por nós. Era severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação, tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, e se fosse hoje se calhar ia presa.
Já viram a importância das mães como a minha, que, repito, para além dos seus, tomava conta dos filhos dos outros? Olhem para as últimas notícias, vejam aí os pais que não sabem tomar conta dos próprios filhos...

A minha mãe comeu o pão que o diabo amassou e diz que o 25 de Abril foi o melhor que aconteceu em Portugal. Isso e as vitórias do FC Porto. Dei voltas e voltas à cabeça e finalmente encontrei um título excelentíssimo para o livro que tenho na ideia escrever sobre a minha mãe. Não se deve partir do título para o texto, tomem nota, mas desta vez até calhou bem. "Alexandrina" é o meu título, depois de muito muito trabalhado, e é uma categoria, não é?
Mas a minha mãe é extraordinariamente maior do que a minha habilidade para a escrita. Eu sei que nunca na vida vou saber escrever um livro sobre a minha mãe - na verdade, eu não sei escrever livro nenhum -, portanto, descendo à terra, a partir deste momento, mudo o tempo do verbo e falo apenas do livro que tinha na ideia escrever sobre a minha mãe. Tinha. Para os arquivos, ainda assim, faço questão que fique registado o título do livro que eu nunca vou escrever: "Alexandrina", que já diz muito...

A minha mãe ouviu um too
Liguei esta manhã à minha mãe, para receber a indispensável bênção semanal, e a minha mãe disse-me que em Fafe estava um frio de rachar, daquele frio que parece que "já passou por muita neve", portanto fora de prazo, e que por volta das seis, sete horas ouviu um too. A minha mãe ficou muito admirada por ser só um. Ainda admitiu, a rir-se com os botões, que fosse uma bomba, mas não, o que ouviu foi mesmo um too, tinha a certeza.
É este falar antigo, escorreito, musical, tão galego nosso, que me apaixona tanto, e suspeito e lamento que sejam já poucos os que o guardam em Fafe. Atenção: a minha mãe falou bem. A minha mãe fala sempre bem. Toar é sinónimo de trovejar e portanto um trovão é um too. Lê-se e diz-se tôo e não tu, à estrangeira. A minha mãe ouviu um too e deram-me umas saudades desgraçadas...

O dedo que adivinhava tudo
Se eu em pequeno acreditava no dedinho da minha mãe que sabia tudo? Acreditava, e acreditava piamente. Aquele dedo mantinha-me na linha. E ainda hoje.

Anjo da guarda, minha companhia
Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Não era castigo, era amor. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda à la menino da lágrima. Rezávamos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia."

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, a urgência, o consultório das aflições e desgraças da rua inteira. A minha mãe curava. Cura. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Éramos remediamente felizes, mas ríamo-nos muito, graças a Deus. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de Saúde e passavam pelo nosso Santo Velho diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. E eu gosto, mãe. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos com a nossa mãe, era "uma cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.

Vai lamber sabão!
Havia o sabão azul, o sabão rosa e o sabão amarelo. O sabão azul era o sabão macaco, para lavar roupa de barba rija, o sabão rosa já naquele tempo era para peças mais delicadas e o sabão amarelo era para lavar as escadas e os soalhos, que, em muitas casas, depois eram encerados. E havia também o sabão para lamber, que eu nunca soube de que cor era nem que sabor tinha, mas era o que a minha mãe me mandava fazer, "Vai lamber sabão!", quando eu andava à roda dela a arengar conversa sem assunto.

A minha extraordinária professora de Português
A língua portuguesa é para mim uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças à vida. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário.

P.S. - Selecção de textos publicados originalmente entre 21 de Agosto de 2011 e 4 de Abril de 2019, aqui repetidos sem rigor cronológico. Há mais e é de graça: basta clicar nas etiquetas "série A minha mãe" ou "série Memórias de Fafe".

3 comentários:

  1. nane,hoje vim cá, sabia que ia ler qualquer coisa boa!
    a tua mãe, senhora alexandrina, foi sim uma grande mulher, sempre a admirei muito e tenho saudades daquele tempo.eu e a nanda éramos unha e carne, tínhamos o mesmo nome e a mesma idade.eu frequentava a vossa casa. andámos na escola sempre juntinhas até a quarta classe. a vida separou-nos...um dia vou até ela!
    Parabéns e obrigada pela tua escrita, mando daqui um abraço que vos abrace a todos, família exemplar!

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