Quando fiz 21 anos comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos quando fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Eram assim os Comandos, para onde não fui voluntário, é preciso que se note. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que às vezes "as coisas correm mal"...
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche talvez marchassem melhor. E depois um golinho de água, por favor...
Naquele tempo eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro (isto anda tudo ligado) Juca Chaves e que, indo directamente aos finalmentes, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando.
P.S. - Este texto é tão velho como o mestre de kung fu, mas também novo como o coronavírus. Hoje, 15 de Maio, é Dia Internacional do Objector de Consciência. Eu não fui objector nem voluntário, a tropa aconteceu-me, mas lembro-me de, anos depois da minha malograda passagem pelos Comandos, ter ido a tribunal militar defender um camarada de profissão que objectava. Defendi-o como defendo os ex-combatentes, voluntários ou involuntários, gente marcada pela guerra e de quem o Estado tem uma certa queda para se esquecer.
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