Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas  gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou  mandar-te um. Espero que te sirva.
Paroles, paroles, paroles
 Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são  cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até  tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O  gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o  contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À  dissimulação?
 Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim  ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos  outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer  abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
 É. Olhem bem à volta: as palavras estão em  alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está  em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.   
Devolveram-me o amplexo
 O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
 O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
 E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
 Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A  criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações  amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas?  Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são  saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se,  sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos.  Agora, saudações amigas...
Amigo é a solidão derrotada 
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És  feliz? Pergunto-lhes acerca do  coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos  sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma  maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
 A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.
P.S. - Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.
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