quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Até amanhã, se Deus quiser...

Foto Hernâni Von Doellinger

Gosto que me digam "Até amanhã, se Deus quiser". Gosto. Gosto que me digam "O Senhor te abençoe". Gosto. Gosto que me digam "Vai com Deus". Gosto. Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. Acredito. Dispenso intermediários, agentes, representantes, vendedores e empresários - eu e Deus é assunto nosso, ligação directa. Dispenso também os novos profetas e as novas profetisas, o Facebook, o Instagram, o Twitter, as mensagens em cadeia e às vezes o Diário de Notícias. Dispenso.
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam.
Fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.

Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há anos me abençoa sem juros e não acredita em bênçãos, e o que é que isso interessa? Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia, que ali vai no retrato, ligeira quanto pode, abençoa-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Madrugo de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vem de Gondomar e àquela hora já está prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela sai da cama. Tem as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, não sabe bem, e pela vida, dez filhos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Vê-me, levanta o braço direito e diz-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu fico pronto. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia diz "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não liga, ignora-a ou sorri-se dela, pior para eles e mais sobra para mim.

Quando a minha mulher, o meu filho, a namorada do meu filho, o Lando, o Jorge, o Lopes, o Nestes e outros amigos que me visitam saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser"...

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