Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim -
e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Na
parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda. Rezávamos: Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia.
(Morávamos
na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à
entrada, era também a sala, o consultório da rua inteira. Eu era então o
mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza
honrada permitia. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Centro de
Saúde e passavam pelo Santo diziam que eu "até a chorar era bonito" -
contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos
caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu
enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em
casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)
Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito
"sem aldrabices", íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma para a
Nanda e a maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim,
exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava
teatro. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais
alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções,
porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos
apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora que
fazia a vida negra ao senhor e que, todos concordávamos, era "uma
cabra".
O teatro terminava, vinha a ficha técnica, mas a nossa mãe só desligava
depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia
"Denis". Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora
vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos
cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.
Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.
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