domingo, 3 de dezembro de 2017

Xavier Marques 2

A madrugada, muito fria e ventosa, parecia ainda noite alta, noite sem estrelas, sem uma cintilação, uma faísca sequer desses fogos pálidos das alvoradas.
A Baía de Todos os Santos marulhava negra, atroadora, debaixo de uma cerração cor de ferro, com borbolhões de vagas grossas como golfadas de óleo.
Ao redor, as faixas de terra das ilhas e costas, fechadas em cortinas de vapor, tornavam mais denegrida a orla do horizonte. O vento, contínuo e possante, soprava dentre leste e sul e arrancava tais ecos ao mar, fazia-o mugir com uma voz tão longa e cavernosa que punha a imaginação em delírio e causaria horror a quem quer que não tivesse o hábito de ouvi-lo.
A embarcação que por esse crepúsculo de inverno velejava para a costa ia, apesar de frágil, sem perigo, vento à popa, com três homens resolutos e fortes, surpreendidos pelo rebojo em plena baía. Por maior que fosse a ilusão de ermo e soledade no meio do golfo escuro, eles sabiam que outras embarcações e outros marinheiros andavam por ali e além a lutar com o nevoeiro, cortando esse mesmo mar estuante e cerrado. É que naqueles fins de junho, às mesmas horas álgidas do alvorecer, as lanchas baleeiras saíam dos portos da ilha, enquanto a ela voltavam os pescadores do alto, aqueles que, mais temerários, não se arreceavam de aguaceiro ou ventania, e curtiam noitadas por cima das águas bulhentas com o mesmo sangue-frio com que lançavam as linhas, em manhãs de bonança.

"O Sargento Pedro", Xavier Marques

(Xavier Marques nasceu no dia 3 de Dezembro de 1861. Morreu em 1942.)

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