sábado, 9 de dezembro de 2017

Aníbal Machado

A suicida do viaduto

A rapariga subiu o viaduto e entregou a alma ao Senhor. O corpo na corda ficou em má posição, pois mesmo embaixo passava o canal da rua cheio de gente.
A lâmpada vermelha impedia o trânsito até que os bombeiros retirassem o corpo do céu.
- Tem calça?
- Tem.
- Não tem.
- Tem, sim!
Os motoristas olham. Olham os soldados. O público olha. Ninguém pode passar.
A dúvida persiste. Um vento bate de propósito nas vestes da moça. Há um zunzum na multidão. Não tem calça!
O delegado então manda afastar os transeuntes. Era proibido olhar. Os bombeiros trabalham. O viaduto se envolve na noite. O vento despiu a suicida. Há um deslocamento de astros e uma estrela nova começa a reluzir no corpo da mocinha dependurada no alto.
As senhoras estão aflitas e animam o esforço dos bombeiros para que se retire depressa do céu aquela estrela, pois não convém que ela fique brilhando muito tempo sobre a cidade. E os bombeiros trabalham, enquanto os homens ficam te olhando, lá de baixo, suicida do viaduto - todos deslumbrados mas em silêncio, inclusive o teu padeiro por quem te mataste e que só começou a te amar depois que viu a tua nudez exposta como uma lâmpada no céu da noite, sobre o clamor das ruas apinhadas.

"João Ternura", Aníbal Machado

(Aníbal Machado nasceu no dia 9 de Dezembro de 1894. Morreu em 1964.)

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