Olhou de esguelha para o gradil e as janelas. Ao transpor o jardim e o terraço escolheu entre as chaves da penca a Yale da saleta. Entreabriu devagar a porta; e tendo entrado não acendeu a luz: lá fora já clareava.
Deteve-se uns segundos circunvagando o olhar pelas sombras indistintas dos móveis; invejou-lhes a quietude e subiu a escada cautelosamente para os degraus não rangerem. Ao entrar no quarto logo pôs de alcateia o recurso da invenção, pois já passava das quatro horas da madrugada. Abeirando-se pé ante pé da orla da cama, debruçou-se um pouco sobre o corpo da mulher, e assim que lhe percebeu o relevo e a tepidez veio para o seu lado habitual, principiando a despir-se. Viu-a virar-se para o canto e proferir duas ou três palavras. Alertou a imaginação ante aquela vaga reprimenda.
Nele a mentira tinha sido sempre a oportuna destruidora de embaraços. Aplicava-a com habilidades instantâneas de simulação, quer para ajeitar atrasos e demoras, quer para tecer coincidências viáveis. Sem hesitações nem redundâncias, tudo muito verossímil. Estirado na cama ficou à espera de perguntas que decerto viriam em série.
"A Mulher Que Fugiu de Sodoma", José Geraldo Vieira
(José Geraldo Vieira nasceu no dia 16 de Abril de 1897. Morreu em 1977.)
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