sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

José Rodrigues Miguéis 4

Devia eu andar nos meus seis anos quando uma tarde um vizinho, que era oficial de diligências e mestre de bandolim, disse sentenciosamente a minha mãe, pousando-me a mão nos caracóis:
"Este menino, minha senhora, devia ter nascido rapariga. Mal empregado, um cabelo tão lindo numa cabeça de rapaz!"
Era no patamar da escada, e foi assim que eu aprendi, se alguma vez havia de aprender, a odiar. Aqueles caracóis dum castanho-doirado deram-me pesadelos, dali em diante, e serviram-me de pretexto a muita brabeira. (Quanto ao bandolim, ainda hoje me causa uma desagradável sensação de aperto na boca do estômago.) Até que um dia não houve mais remédio senão a minha mãe levar-me pela mão a um mestre-escama do Largo da Graça.
Foi para mim um dia de orgulhos e alegrias: a aurora, em suma, da virilidade. Depressa o vestidinho verde, de "machos", ia ter a mesma sorte: pois naquela época, que nos parecia de uma romântica paz (é sempre paz para quem não está em guerra), os garotos da minha idade andavam de saias, como os gaiteiros da Escócia. O barbeiro, de olhos verdes estagnados na cara pálida, balofa, picada das bexigas, era todo frisado como um tenor. Disse-me palavras boas para me animar. Crianças daquela idade em loja de barbeiro são como elefante em loja de louças: mas eu caprichava, mordi a boca e fiz exceção. A minha compostura e coragem arrancaram brados de louvor ao fígaro e aos frequentadores ociosos, reunidos em círculo a admirar-me. Nunca se tinha visto um menino tão bonito, tão bonzinho, com tanto juízo, numa cadeira de barbeiro! As tesouras do mestre cantavam-me aos ouvidos como rouxinóis e, com a secreta voluptuosidade de que só as crianças têm o segredo, eu vi cair um após outro os odiosos caracóis, sob as tesouradas libertadoras. Era um tempo de fáceis demolições. Minha mãe, coitada, e sorrindo, derramou duas lágrimas sentidas. Curvou-se e apanhou do soalho enxovalhado um anel do meu cabelo, que havia de conservar para o resto dos dias, numa medalhinha de ouro: "Eras tão loirinho!", dizia-me ela para me consolar da trunfa negra, escorrida, dura como arame, que mais tarde me vestiu o escalpe.
 
"Pouca sorte com barbeiros", em "Léah e Outras Histórias", José Rodrigues Miguéis

(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)

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