Dali passei a Santo Tirso, onde estive homiziado numa quinta toda murada como grande cerca de convento. Uma semana depois fui para a Torre, a velha casa de quando eu era moço e feliz. Só dois dias, e uma antiga criada apavorada, pois a polícia já lá tinha estado e vasculhara tudo, até os gavetões do arcaz da sacristia da capela. Portas e janelas fechadas para que ninguém suspeitasse que alguém dos donos estava ali, era como alma penada a passear pelos salões, quartos, corredor e na varanda à noite, no escuro, ouvindo a água das taças do jardim a chorar baixinho as mágoas da minha desventura.
E os mortos vinham-me à lembrança, também assistiam àquele drama e contavam os desenganos, os sofrimentos, os triunfos por que passaram, pareciam sentados naquelas cadeiras, dormindo nas amplas cadeiras de espaldar, passeando pelas ruas do jardim, as velhas matronas colhendo flores para a capela, onde a Nossa Senhora das Dores, com o filho morto no colo, chorava da injustiça e da crueldade dos homens. Outras vezes aquelas roseiras que vinham até à varanda deram as rosinhas de toucar para enfeitarem o caixão dum pequenito e que a pobre mãe pedia por esmola, lágrimas nos olhos tristes e saudosos, dizendo, entre soluços duma mágoa que só as mães trazem estampadas no rosto quando perdem um filho, que o seu anjinho, assim enfeitado e todo de branco, iria para o céu mais contente, e era até uma graça do Senhor tê-lo levado, pois já não passava mais fome nem frio, como os outros irmãos, que ficaram neste mundo dos "probes".
"Memórias do Capitão", João Sarmento Pimentel
(João Sarmento Pimentel nasceu no dia 14 de Dezembro de 1888. Morreu em 1987.)
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