quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

José Rodrigues Miguéis 3

Sinto-me bem nesta cadeia. É um belo edifício claro, em pavilhões de dois andares, isolados no meio duma grande cerca arborizada, que um alto muro separa, julgo eu, de caminhos e terras cultivadas. Nenhum rumor chega de fora. Às vezes, vou até junto desse muro, que a hera muito densa envolve de poesia, e, numa sombra repousante e fresca, abandono-me a ouvir os pequenos murmúrios da terra e do ar - uma folha que tomba, um pássaro que tila, um insecto que zumbe, um gorgolejo de água - e assim levo muitas horas do meu dia, meditando e escrevendo, como os frades antigos, até que um toque de sineta me venha chamar para a comida ou para o recolher.
Tudo me parece raro, novo e extraordinário. Só agora descobri o oculto sentido de muitas coisas - e mais pela emoção que me provocam do que pelos juízos que formulo. Assim, depois dos meus erros e crimes, pergunto a mim mesmo se será legítimo viver com tanta calma e despreocupação: um criminoso não deveria ter dores, ser torturado? A punição é apenas isto?
Sim, tenho há muito a impressão de que vivo num sonho. A vida corre com uma serenidade impressionante. Penso quanto, noutro tempo, eram felizes os homens a quem se concedia o direito de fugir, como eu fugi, afinal, à vida angustiosa do mundo. Quase me julgo feliz. E porque não?
A cadeia não é como eu supunha, nem o que se diz lá fora. Nada nos falta, tratam-nos bem, embora vivamos numa quase completa solidão. Isto a mim agrada-me, de resto: aborreço o convívio dos homens. Só na aparência os considero meus semelhantes. Aqui, sou apenas um número: o 28.
Vejo agora quanto a criminologia tem progredido no sentido da mais ampla liberdade: cada qual faz o que quer - ou não faz nada. Muitos presos passam os dias metidos na cama. O trabalho deixou de ser obrigatório. A regeneração do criminoso obtém-se agora, ao que parece, por uma forma espontânea, a que eu, se dão licença, chamaria a "psicoterapia da indulgência".
Toda a casa é irrepreensivelmente asseada. O meu quarto é branco, limpo, tem um tecto alto e uma enorme janela sem grades, donde enxergo um vasto panorama de pinhais e terras de lavoura.
Não posso deixar de registar, no entanto, um facto muito estranho: às vezes, durante a noite (eu durmo pouco e tenho o sono leve), sobressalto-me ouvindo gritos, discussões, gemidos, um rumor de luta e de pancadas, e mesmo um estilhaçar de vidros... A primeira vez que tal aconteceu, cobri-me de suores e fiquei todo arrepiado. Receei que se aproveitassem da noite para nos aplicar um tratamento um pouco rude. Como tudo se calou, tornei a adormecer. O caso repetiu-se, e cheguei a julgar-me vítima de alguma ilusão. Porque gritavam? Intrigado, ergui-me várias vezes para escutar, mas acabei felizmente por me desinteressar do que se passa nesta grande casa de aspecto misterioso. São presos que se revoltam, ou que brigam, e a quem aplicam penas corporais? Não sei. Renuncio a sabê-lo. Ninguém me dá, nem eu peço, explicações. Nada me importa, os outros não existem para mim... Que façam como eu: calo-me, obedeço, vivo tranquilamente. De que serve a liberdade? Livre, o homem corre ao precipício.
Outro facto que de começo me indispôs: não me deixam ler os jornais, nem mesmo os antigos, onde poderia encontrar certos dados cuja falta me perturba.
Que terá dito de mim a grande imprensa?
Não tenho notícias do que vai pelo mundo. Não sei mesmo onde me encontro. Vivo como um cenobita.
Isto é bom.
 
"Páscoa Feliz", José Rodrigues Miguéis

(José Rodrigues Miguéis nasceu no dia 9 de Dezembro de 1901. Morreu em 1980.)

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