quinta-feira, 22 de maio de 2014

Sou esbraguilhado e não sabia

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não cheguei a uma conclusão. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quarenta anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, até ontem e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças à vida. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário.
Depois tive a sorte do professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. E eu não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri ontem a palavra esbraguilhado e gostei dela. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras, que é para o que o Tarrenego! me serve.

11 comentários:

  1. Que me recorde, só te transformaste num esbraguilhado quando o volume abdominal a isso te convidou!!! Abraço
    cm

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  2. Aliás, não me saem da cabeça os teus famosos suspensórios!!!
    cm

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  3. Fui um aluno brilhante. Até à 4ª classe - grosso modo enquanto estive sob aturado escrutínio da avó. Palavras difíceis tinham que ser muitas, ainda que eu as soubesse de cor e salteado. Escritas com aprumo e nunca, letra que fosse, abaixo da linha - dava direito, inalienável, a começar tudo de novo e a limpo. Ah... e quanto a limpo, era limpo mesmo no sentido mais literal que a palavra oferece. Mas, o melhor... bem, o melhor mesmo, a obra prima eram as composições. Coisa com gosto. Não devia ser nem muito longa, nem muito curta. No ponto. Era-lhe lida em voz alta e convinha estar preparado para, a qualquer instante, ser interrompido com um "lê lá essa parte outra vez que isso não me soou lá muito bem!". Repetida a leitura, e se a primeira sentença se confirmasse, ouvia um "vai e escreve de novo que isso assim não está bem". Lá ia. Repetida e, aprovada na leitura, já podia descansar - seria a melhor composição da classe. E eram sempre. A Milinha botija - a minha professora - não me deixa mentir, eram as melhores e fazia com que as lesse, sempre, aos outros meninos.

    jvd

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    1. Esclarecimento: a avó do jvd é a minha mãe.

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    2. Esclarecimento do esclarecimento: não sou filho do Hernâni.

      jvd

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  4. Seu esbraguilhado da tola! Grande texto. Ab. ja

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  5. Esbraguilhados (no sentido de abertos, saídos) deviam de ser estes textos para que toda a gente os pudesse ler.
    A maior parte dos cronistas deste país devia de ter aulas contigo!
    Abraço grande,
    P.
    (vou facebokar o teu texto)

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    1. Por ser amigo, não posso dizer uma verdade?
      Outro abraço grande,
      P.

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