sábado, 14 de janeiro de 2017

O pãozinho do Senhor, segundo a avó de Basto

Vi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia, que na Turquia há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas foi assim contado, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas influências foram tão longe que chegaram a Passos, Cabeceiras de Basto, à casa da minha avó. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os miúdos ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam restos de couves, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos de uso e das águas entornadas, que lhe davam uma consistência de cimento. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte.
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)

Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não sujava, que o beijo purificava, que não se podia estragar pão, era pecado, porque havia muita gente com fome. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo que ir para o lixo, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, quem fica estragado sou eu.

Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

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