Bem boas que elas andam, as fanecas. Já repararam? Se calhar a mãe 
Natureza resolveu chamar à razão a nem sempre atinada lei das 
compensações, mas a verdade é que, a seguir a uma época de sardinha que foi uma desgraça, a faneca apareceu-me este ano com uma categoria de que eu já nem me lembrava. Tenho-me regalado.
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, ou
 então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois 
envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há 
derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a 
faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco e fui à pesca da faneca com o grupo do Adélio Santos.
 Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e
 sem passagem pela cama. Não sei se serviu de engodo, mas o certo é que 
aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela 
companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes 
cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito
 a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era 
que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo na minha 
lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como 
eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito 
honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por
 aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito
 (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do 
século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a 
barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas gajas, em Cima 
da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a coisa,
 dizer-lhes entredentes "Ah, faneca!" e levar um estalo na cara que 
acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se lembra, nem era homem 
nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas
 mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram 
fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com
 o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda.
 Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado 
pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e 
estragativas, amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: 
comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, mas é 
preciso saber dar-lhes as voltas.
(1. Texto escrito e publicado originalmente no dia 21 de Março de 2012, então sob o nome de "Fanecamente falando". Repito-o hoje sobretudo por causa do quarto parágrafo, o do estalo. As coisas acabam de mudar dramaticamente: agora, chamar faneca a uma gaja poderá dar cadeia; um apalpão de mamas, suponho, deverá ir até ao enforcamento.
2. Exercício recomendado: dizer 150 vezes, para toda a família e sem se rir, "criminalização do piropo".
3. O título desta ponderada e gastronómica reprise também poderia ser, e se calhar melhor, "Em nome do piropo, ou quando a faneca é crime".) 
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