domingo, 13 de outubro de 2024

Os "aitens" da Senhora Presidenta

Foto Hernâni Von Doellinger

Comentava-se o Orçamento de Estado na rádio Antena 1, à hora do almoço. Luísa Salgueiro, presidenta da Câmara de Matosinhos, foi convidada a dar a sua opinião, na qualidade de também presidenta da Associação Nacional dos Municípios Portugueses - ANMP. Como se tivesse lido o documento de ponta a ponta mesmo antes de ele ter sido entregue na Assembleia da República, a autarca de todos os autarcas falou, falou, falou, aliás como costuma falar. E referiu-se, nomeadamente, aos "aitens" do Orçamento, aos diversos e variados "aitens", eu ia buscar uma maçã à cozinha, o rádio estava aceso e, palavra de honra, obliterei-me como que por relâmpago, trouxe mais um jarro de água, porque entretanto perdi-me, e eu queria comer, não era beber. Perdi-me nos "aitens" da Senhora Presidenta. 
"Aitens"? Mas quais "aitens"? "Aitens"? A sério? A palavra item era um advérbio latino. Latino, não germânico ocidental ou anglo-frísio. E assim ficou em português. A forma correcta de pronunciar a palavra item é "íteme", à maneira latina, ou, parece-me melhor, "ítem", na forma aportuguesada. O plural de item é itens, dizendo-se "ítens".
A Senhora Presidenta disse "aitens" e eu, claro, lembrei-me de Salazar, da velha anedota de quando o ditador foi de visita a Inglaterra. Resumindo, e sem ofensa para os novos fascistas, do Chega ou não: Salazar, que usava vaso de noite e viajou acompanhado pelo seu mordomo Francisco, não sabia falar inglês, mas disseram-lhe que era fácil, o português era igualzinho ao inglês, bastava trocar o "i" por "ai". A meio da noite, apertadinho, o presidente do Conselho chamou, com o mais perfeito sotaque londrino - Ó Chaico, traz-me o penaico!
Era apenas uma anedota, um bocado ingénua, talvez oposicionista, se calhar Salazar até sabia falar muito bem inglês, basta ouvir António Guterres hoje em dia, mas foi dela, da anedota, e dele, Salazar, que eu me lembrei ao ouvir os "aitens" da Senhora Presidenta.
Eu sei que Luísa Salgueiro não está sozinha quando assim manifesta esta espécie de analfabetismo chique (aliás, "chaique"). Os "aitens" andam por aí de boca em boca, na boca de toda a gente, repetidos, normalizados, modernos, como se a patacoada já fosse regra gramatical. Não é. E incomodou-me, doeu-me, envergonhou-me particularmente ouvir a Senhora Presidenta a asnear ali na rádio nacional, à vista do país inteiro. Fiquei sentido por ser ela. Tocou-me como se fosse comigo. Porque, a verdade é só uma, moro em Matosinhos, a Senhora é a minha Presidenta e eu, ainda por cima, faço-lhe muito gosto.

(Agora outra coisa, que não tem nada a ver. As velhas anedotas de Salazar, que certamente ele também terá herdado de outro figurão que eu não sei, passaram depois para Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique independente. E assim sucessivamente.)

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