Foto Hernâni Von Doellinger |
Todas as manhãs, faça chuva ou faça sol, dias úteis ou dias inúteis. Todas as manhãs, de saquinho na mão, ele sai de Matosinhos atravessando o Passeio Atlântico de uma ponta à outra, em passo leve e decidido, e entra breve no Porto. No saquinho leva comida para os pássaros - milho para as pombas e pedaços de pão para os patos mas pouco, para os corvos-marinhos às vezes e para as vorazes e cagonas gaivotas. Sim. Para as gaivotas, raça tão desprestigiada hoje em dia, vítima de perseguição e tentativa de genocídio perpetradas por alguns autarcas aqui da beira-mar. Ele, o homem do passo leve e decidido, dá-lhes o almoço.
E todas as manhãs acontece o extraordinário: por alturas da Rotunda da Anémona, fronteira municipal, as pombas saem-lhe da cartola, materializam-se do nada, fazem-lhe bando por cima da cabeça e acompanham-no em revoadas dançarinas até à distribuição geral, no charco mais ocidental do Parque da Cidade, à porta da abandonada Kasa da Praia. As pombas reconhecem o seu benfeitor? Identificam o saquinho? Vão apenas ao cheiro? Serão, por assim dizer, o Espírito Santo em pessoa? Não sei - mas aquilo comove-me. Espanta-me. Fosse em Fátima, e seria certamente milagre.
Servido o festim, o cuidador de pássaros volta para casa pelo mesmo caminho, sempre com uma pequena reserva de pão e de milho no fundo do saco, prevenindo emergências que as há. Pomba tresmalhada ou retardatária, gaivota de asa caída ou manca ou qualquer outra ave freelance também têm direito à sua dose individual, no respeito do espaço de cada qual. É. Os solitários entendem-se...
Pois durante a pandemia, pela menos, o gentil alimentador da passarada desapareceu-me da vista. E a mim, caramba, fez-me diferença, porque eu dava-lhe valor. Fui também, no meu tempo de miúdo, em Fafe, um razoável pensador de galinhas e coelhos, e portanto havia ali qualquer coisa que me dizia respeito, que me enternecia e, verdade seja dita, também me abria o apetite, e vinha-me à cabeça o franguinho guiado pela minha avó de Basto na panela de ferro apurando ao borralho.
Felizmente o senhor das pombas voltou, e em grande forma. Uma sorte para ele, para os pássaros e também para mim, que estou sempre a ligar umas coisas às outras e sou tão dado a nostalgias, e se for à mesa melhor...
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