sábado, 19 de outubro de 2024

O Padre Clementino

O Padre Clementino morava no seminário. Não porque fosse prefeito ou professor ou tivesse outras responsabilidades administrativas ou religiosas, mas apenas porque naquele tempo ainda não havia lares para padres velhinhos e desconsertados. O Padre Clementino não era velhinho - avariara, ninguém o reclamou e ficou por ali. Mas era uma figuraça, património diocesano, um mito vivo. Baixote, redondo, anafado, bonacheirão, vermelhusco de cara e sorriso gaiato, batina coçada, sebenta, amiúde carregada de nódoas, isto é, o Padre Clementino tinha tudo para ser cónego, mas, que eu saiba, felizmente nunca lhe fizeram essa desfeita.
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão.
Contava-se. Pela calada da noite ou durante o horário lectivo, o Padre Clementino andava de bicicleta pelas compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estão a ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali novamente bicicletando. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...

P.S. - Ontem foi Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja. O Padre Clementino era.

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