A minha mulher meteu os papéis para a reforma nos finais do ano passado. Isto é, mandou a papelada para baixo, como se dizia antigamente em Fafe e quem tratava do assunto era o Sr. Armindo Bristol, pai do Armindo Cinco-Coroas, príncipes do velho Picotalho e gente do melhor que possa haver no mundo inteiro. O Sr. Armindo pai, homem letrado e bom, vestia fato e sobretudo e despachava na mesa do tasco muito limpa e organizada em envelopes, folhas de papel de 25 linhas, folhas de papel selado, cédulas pessoais, bilhetes de identidade, cartões da Caixa, recibos, atestados médicos, provas de vida, recomendações do presidente da Junta, do regedor e do bufo da Pide, a bênção do senhor abade, selos dos Correios e estampilhas fiscais, uma caneca de verde tinto e quero crer que escrevia com caneta de tinta permanente. O Sr. Armindo, figura excelentíssima que um dia espero contar melhor, passou uma porrada de anos no sanatório e foi lá que se formou em burocracia e ajuda aos outros. Quando tornou a casa, salvou o resto das vidas de milhares de fafenses desinformados, abandonados, assustados e analfabetos. Serviço prestado a troco de um quartilho, por um punhado de moedas ou por uma nota de vinte, consoante as posses dos desgraçados requerentes e da previsão da tença a haver, ou então por nada, apenas por um obrigado, um Deus lhe pague, uma mãozada, ficamos assim e não se fala mais nisso, porque na nossa terra, naquele tempo, abundava quem não tivesse dinheiro sequer para assobiar em cuecas, e o Sr. Armindo sabia disso e fazia caso.
Mas nós, a minha mulher e eu, antes que me perca outra vez. Como ia dizendo, ela meteu os papéis, estava tudo certo, e em Janeiro ficou livre. Eu, como muito bem sabe quem me conhece mais ou menos, estou praticamente reformado desde que nasci, e livre sempre. Libertos os dois, podemos enfim realizar todos os sonhos de duas vidas inteiras que são só uma e vai a meio. Organizámos logo a primeira semana do ano, não sei se se lembram, chamando-lhe, muito originalmente, "a primeira semana do resto das nossas vidas". Agendámos viagens a Nova Iorque, a Londres e a Paris. Aos Himalaias e aos Apalaches. E à Conga, na portuense Rua do Bonjardim, para comermos duas ou três bifanas e talvez também uma codorniz. Isto só para a primeira semana. Mas, como igualmente admitíamos, o tempo não chega para tudo, e portanto que se segue? Entramos hoje na décima sétima semana do resto das nossas vidas, fomos um par de vezes à Conga, de metro para lá e de autocarro para cá, e por acaso também tem sido porreiro.
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