sábado, 4 de dezembro de 2021

O que é doce nunca amargou

Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião a jacto. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias. O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, como pedido de desculpas, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos apressados a novidade, o nosso pai fez-nos rir como de costume e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo, e já lá irei.

Fafe era um terra de antonomásias, estoufarto de dizer. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo e que na verdade se chamava Cine-Bar, eventualmente dada a sua proximidade e até uma certa ligação ao Teatro-Cinema e à família Summavielle. Mas cafés, tascos e afins havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe, respeitando a tradição, passou a ser "o" Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu alto, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café (bica, se lido em Lisboa). Se ainda ao menos fosse um cigarro!...
Eu e o Sr. Avelino, o tempo haveria de fazer-nos bons amigos, mas nunca lhe perdoei a desfeita do café.

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Subia a um banco para subir à mesa da cozinha para chegar ao armário, abria a lata, passava o pão, fechava a lata e saía dali a cem à hora mas com mil cuidados para não entornar o "recheio". Côdea de broa com açúcar amarelo, isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Gemada simples e honesta: gema de ovo batida numa malga com muiiiiiito açúcar. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar para a broa a minha mãe fechava os olhos. Fazia de conta que não sabia...

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Junho de 2012, sob o título "Eu era mais broa com açúcar amarelo". Hoje, 4 de Dezembro, é Dia da Bolacha.

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