terça-feira, 30 de junho de 2020

Fernando Guedes 4

A flor

Intercepção globular
no ponto infinitamente repetido
a existência cessa
em cada instante.

Aqui. No caule ou na folha,
no golpe da enxada,
em mim ou em ti,
no lento mover da roda, no fruto,
construí a cidade.
Ceifaras no campo todo o dia
e de noite vieste ao meu encontro.
Entre o que foi e o que será
alterou-se o número
e a posição do movimento.
Nas ruas desertas
furtivos espreitam os velhos
pelos óculos das portas.
Viram-te chegar,
sabem a cor dos teus olhos
e vão dizer que és pura,
quando for meio-dia,
junto à porta grande da cidade.

Não importa que sejas estrangeira
- sou eu tua nação.
Procurei-te entre as casas,
na roda movente,
entre os grãos de milho torturado;
passei o bosque, o rio,
adormecida te encontrei
no espaço absoluto,
no vazio sempre pronto a mais vazio,
e, crescidos, teus cabelos eram um rebanho de cabras
deixando a planície.

Sete rosas marcam tua vida,
dispostas em losangos, dois losangos:
seis flores úmidas, uma de bondade,
brancas, flores brancas.

Quem te encontrar saberá
que existe um corpo existindo na distância,
fora de nós,
para lá de Andrômeda,
contemporâneo do passado,
permanente na sucessão ilimitada e necessária,
uniformemente transeunte.


"Caule, Flor e Fruto", Fernando Guedes

(Fernando Guedes nasceu no dia 1 de Julho de 1929. Morreu em 2016.)

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