quinta-feira, 5 de março de 2020
O velho contador de anedotas
Levava um banquinho e sentava-se em Cima da Arcada, de guarda-sol aberto, se
fosse o caso, e um caderninho de folhas quadriculadas, sempre. Espertava os olhos cansados, via sair,
e tomava nota. Saíam do Mário da Louça, do Damião Monteiro, do Café Império, do Foto Jóia, do Talho, da Caixa, do Martins
da Avenida, do Rabeca, da Câmara, da Juditinha, do Sanica, do Casinhas, da Senhora Eufémia, do Américo das Bicicletas, do Alfredo
Sapateiro, das Lobas, do Club, da Pacata, da Loja Nova, da Casa da Cera, dos Armazéns Cunha,
do Banco. Saíam, e ele registava, mão trémula porém infalível. Analfabeto de nascença, utilizava a
técnica do Miguel Cantoneiro, ecumenicamente adaptada: uma cruzinha para
os pobres e desiludidos como ele, uma cruz para os menos mal da vida e um cruzeiro para a dúzia e meia de cagões
locais. À noite, em casa, depois da sopa e antes do terço, fazia a soma,
por escalões, comparava com os dias anteriores, as contas todas
certinhas, noves fora nada, anotava as variáveis e arquivava tudo no saco de serapilheira debaixo da cama. Dizia que era contador de anedotas.
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