- Não sei ler, mas faço coisas - repontava, mostrando carros e barcos toscos de madeira.
Despeitados, os outros desvalorizavam-lhe o engenho precoce, em que ele confiava, mais do que nos livros.
- Quando eu trabalhar com as máquinas... - E de tanto falar em máquinas, chamaram-lhe Maquineta.
João era o Gaitinhas, porque gostava de imitar os instrumentos da banda musical. Nos domingos de concerto, postava-se junto do coreto, atrás do regente, de olhos postos nos saxofones e clarinetes reluzentes, indeciso na escolha. Um dia, a mãe perguntou-lhe:
- Para que queres estudar, João?
- Pra músico - respondeu de pronto.
Mas entrou para a escola e quis ser doutor. Seguia a vontade do pai, nas cartas que tantas vezes lera. Páginas recheadas de sonhos e projectos envelhecidos, dobrados no baú, como relíquia inútil.
Agora estava ali na praça, desolado e sem destino. Crianças maltrapilhas corriam atrás dos carros e escondiam-se nos pára-choques; outras, endomingadas, junto dos pais, esperavam lugar nas camionetas. Via-se em todos os rostos a alegria das horas livres que iam gozar, esquecidos do lar falto do pão e do telhal farto de trabalhos. Só o Gaitinhas estava triste. Não arranjou boleia nos carros, nem se misturou com o povo. Seguiu para casa, isolado, a meditar no mundo dos rapazes descalços e analfabetos como o Maquineta, ao qual em breve iria pertencer.
"Esteiros", Soeiro Pereira Gomes
"Esteiros", Soeiro Pereira Gomes
(Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de Abril de 1909. Morreu no dia 5 de Dezembro de 1949.)
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