Era em Vaz Lobo, uma segunda-feira. De manhã, bem cedinho - seriam umas sete ou sete e meia, no máximo - apareceu a andorinha, com a mudança. O caminhão enorme, que entupia a rua, encostou no 78, que era, justamente, a última casa da Vasconcelos Graça, do lado esquerdo de quem vem. Prédio velho e triste, de um andar só, com a pintura descolando nas paredes. O último inquilino, um "seu" Felipe, saíra de lá em rabecão. A mulher o abandonara, levando os filhos, um menino e uma menina. "Seu" Felipe, sujeito caladão, sempre de cara amarrada, era sócio de uma casa de jóias, na cidade. Traído e abandonado, tomou um corrosivo violento. Morreu junto ao rádio que estava ligado para o programa do Jóquei, na "Jornal do Brasil". Enquanto estrebuchava no chão, o Teófilo de Vasconcelos anunciava, ao microfone: - "Foi dada a saída!" Pois bem: - atiraram o homem num caixão de alumínio e o rabecão levou o corpo para o Instituto Médico-Legal. De lá, veio para uma capelinha, junto do Pronto Socorro. A esposa apareceu, no velório, de passagem. Chega, pára, faz uma prece. Em seguida, suspende um filho de cada vez; e, emborcando a criança sobre o rosto do cadáver, dizia-lhe:
- Beija teu pai, beija.
Cada um dos filhos roçou com os lábios aquela testa úmida. E a menorzinha, a menina, sentiu na boca o suor do defunto. Fez uma caretinha de nojo e cuspiu nas costas da mão. Zózimo de Barros Guimarães veio morar, com a família, na mesma casa. Naturalmente, a senhoria aproveitou para aumentar o aluguel que, no tempo de "seu" Felipe, era quase de graça. Mas, como eu ia dizendo: - encostou o caminhão e, logo a seguir, veio o táxi com os novos moradores. "Seu" Zózimo saltou na frente e pagou o automóvel. Desceram a mulher, D. Engraçadinha, bonita senhora, e os cinco filhos: - o rapaz, Durval, de 19 anos, cujo perfil lembrava o do falecido John Barrymore; e as meninas: - Matilde, a mais velha, com 17 anos, Arlete, com 16, Margarida (ou Guida), com 15, e Silene, a caçula, com 14. A mais velha emprestava à menor o lenço amarrotado:
- Limpa o nariz.
"Asfalto Selvagem - Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
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