Já está! Já me cortei!
Abro a gaveta e procuro, em vão, uma pedra-alúmen que comprei há anos, quando ainda era solteiro. Desapareceu.
Não tenho outro remédio senão limpar o sangue à toalha.
A minha toalha é azul e tem o meu nome bordado. A toalha da Fernanda é cor-de-rosa e tem o nome dela bordado. Pego na toalha e procuro o meu nome. Só agora reparo que a toalha é diferente. É nova, o azul ainda não desbotou. A um canto, em lugar do meu nome, encontro a palavra "dele" bordada a branco. Pego na toalha cor-de-rosa, também nova, que está ao lado da minha. A um canto, também bordada a branco, está a palavra "dela".
Já nem sequer tenho nome! Agora sou "ele", a parte masculina duma quimérica unidade que passa por ser um casal feliz...
Atiro com as duas toalhas para o chão e começo a limpar a cara, sem me esquecer de tirar o sabão que está atrás das orelhas.
Pensando melhor, as toalhas não têm culpa do que se passa. Atirá-las para o chão é infantil. Abaixo-me para as apanhar. Estão na posição em que caíram, muito juntas, envolvidas uma na outra, como se tivessem casado na véspera.
Batem à porta. Já sei quem é.
- Posso entrar?
- Não. Tens de esperar um minuto. Estou na retrete.
A mentira produz o efeito desejado. A porta não se abre. A Fernanda continua lá fora. Sorrio para o espelho. A imagem responde-me da mesma forma. Fico parado a fim de ouvir os passos da Fernanda afastando-se da porta. Não oiço nada. Continua lá fora à espera que eu saia da retrete.
- Já posso entrar?
- Ainda não. É só um momento.
Puxo a corrente do autoclismo para que ela pense que acabo de me levantar.
- Já posso?
- Já.
Atravesso a casa de banho dum salto e mergulho a cabeça no lavatório. Quando ela entrar, já me não pode beijar, porque estou molhado.
"Um Homem Não Chora", Luís de Sttau Monteiro
(Luís de Sttau Monteiro nasceu no dia 3 de Abril de 1926. Morreu em 1993.)
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