Caminhava-se através de pequeninas casas que se apoiavam umas às outras e em breve se chegava a um retiro de caravanas. Mas naquele dia, junto a uma aguada no centro, o número de forasteiros, que ali haviam chegado, era enorme. Faziam pequenos círculos nessa hospedaria a céu aberto, sob a luz das estrelas; muitos cantavam alto sua ascendência, no encarreiramento de nomes ressoantes, como se afiassem a língua para, no dia seguinte, diante de um copista e do rolo de pele de carneiro, tornarem presentes suas linhagens de Davi. Havia cameleiros encostados a enormes animais indormidos que bafejavam o ar com seu hálito quente. Burricos relinchavam; eram presos junto a seus donos, que se envolviam em mantos e tentavam dormir a céu aberto. Perto da entrada um velho solitário cruzava as pernas encostando-se ao muro e repetindo orações, imóvel e meio desfalecido. Agarrava-se às preces, quando soavam os gritos alegres das gentes nômades que ralhavam por motivos de cargas. Lá atrás, havia outros pequenos espaços murados, feitos de pedra mas também a céu aberto. Comprimiam-se pessoas ali dentro, sob mantos, carga humana mais rica. Estas divisões agora custavam bom dinheiro e quase só as mulheres as haviam ocupado, enquanto os maridos, irmãos ou pais ficavam lá foram no envolvimento daquela noite ruidosa, em que uns se roçavam a outros, em que seria possível até morrer, agonizando aos gritos, como poderia ser o fim do velho em preces, e talvez não houvesse ouvidos, pela grande confusão entre as vozes humanas e a dos animais, a chegada de novas carroças, a oferta orgulhosa de ricos comerciantes que tomavam as câmaras - se é que assim se podia dizer daquelas separações em pedra - para as suas famílias, no tinir da moeda mais cara.
Maria esperava, olhando com curiosidade ferida, todas as vezes que o largo portão se abria, para aquela gente ali amontoada, cheirando à banha de carneiro e acendendo suas pequeninas fogueiras nos quatro cantos dos muros. Depressa voltou José amargurado, mas escondendo os cuidados:
- Se quiseres, encontramos algum lugar, lá no fundo, depois dos cameleiros.
"Memorial de Cristo I, Eu Venho", Dinah Silveira de Queiroz
(Dinah Silveira de Queiroz nasceu no dia 9 de Novembro de 1911. Morreu em 1982.)
Sem comentários:
Enviar um comentário