Foto Hernâni Von Doellinger |
Parece o reclame de um salão de cabeleiro unissexo. "Sansão & Dalila". Desinteresso-me primeiro, mas ele está ali mesmo à minha frente, colado na carruagem do metro, e de repente começa a exercer sobre mim um fascínio inesperado e misterioso. Olho melhor, a ver se percebo o que se passa comigo. Ah!, afinal é a ópera de Camille Saint-Saëns, que vai à cena no Coliseu do Porto. É "Sansão e Dalila". O e não é comercial, é apenas truque gráfico, modernice. Pronto, está tudo esclarecido.
Mas não estava. O anúncio continuava a chamar por mim. Que raio de poder hipnótico poderia ter aquele pedaço de papel plastificado? As palavras mágicas não paravam de ecoar na minha cabeça, "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila", "Sansão e Dalila"... Resolvi-me, levantei-me do meu lugar, dei dois passos em frente, tirei os óculos, semicerrei os olhos e tentei espreitar para dentro do reclame. O metro apitou, uma, duas, três vezes, e o reclame abriu-se num clarão como se fosse o meu espelho de Alice, puxando-me pelos colarinhos e levando-me aos confins do meu passado, numa viagem instantânea até ao tempo em que
eu era um miúdo. Éramos todos uns miúdos. E íamos em bando até à porta da D. Laura Summavielle, filha, que morava à beira da Igreja Nova. Os Summavielles (Sumaviéis, na versão fafense) eram os donos do Teatro-Cinema de Fafe, do Cinema. E nós íamos pedir à D. Laura, que devia ser o melhor coração da família e para mim era o melhor coração do mundo, que nos levasse a ver o filme de graça. E a boa senhora levava.
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos que ir mesmo a casa da D. Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extraordinário grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A D. Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Sr. Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Sr. Castro, comunista, alfaiate e bom amigo.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da D. Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa benfeitora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Sr. Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme. O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha que me afastar para não ser sugado. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto.
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Sr. Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta história, mas em italiano.
No meu Cinema, no tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Sr. José e Sr. António do Santo e pelo Sr. António Quim, que eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, passei a ter bilhete reservado para todas as sessões e, depois do 25 de Abril, até vi o "Último Tango em Paris". Duas vezes.
Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Sr. José do Santo e sem a D. Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança, mas não é a mesma coisa.
(Texto publicado no dia 26 de Setembro de 2011. Acrescentei-lhe agora a foto.)
Conheci o interior desta enorme obra e que vaidade fiquei mais uma vez em ser Fafense! Aproveita um dia e visita pois vai sentir boas recordaçoes certamente. Ainda bem que existem autarcas assim, olham pelo bom das suas terras, pois se assim nao fosse iriamos la ter um banco,ou um hotel ou entao uma casa de chineses!
ResponderEliminarAbraço Miguel
Obrigado pela visita e pelo comentário.
EliminarReleio este texto e, mais uma vez, me delicio com a forma como as palavras se encavalitam umas nas outras de forma perfeita, como que nos colocando no sítio a que se referem. Nunca estive neste cinema, mas, se um dia lá entrar, vou achar que já lá estive. Parece fácil escrever assim, mas não é, meus amigos. Não é mesmo nada fácil. É categoria, pura categoria.
ResponderEliminarGrande abraço, se nane.
P.
Obrigado, caro P., pela visita e pelo lisonjeiro comentário. E já percebi aonde queres chegar: ok, eu pago a próxima...
EliminarAbraço,
h.
«Uma palavra é como a nota que procura outras para um acorde perfeito.» Do Eugénio de Andrade para o Hernâni von Doellinger. Claro está que se refere a mais um dos seus acordes perfeitos. E, se o Hernâni não conhece, dê ouvidos ao album «Focus». O melhor que uma relação luso-italiana alguma vez produziu, Ennio Morricone e Dulce Pontes. Está lá o seu cinema paradiso, o último tango, mar e luz prodigiosa, mas também uma casa abençoada e um barco abandonado. Acordes com acordes se pagam! Bem haja, M
ResponderEliminarBoa tarde, Hernâni. Este é muito melhor do que o Cinema Paraíso. Pelo menos não ardeu nem foi abaixo (por acaso). Posso roubar este também? Obrigado.
ResponderEliminarSirva-se sempre que quiser. E muito obrigado. Abraço.
EliminarUma boa música para um excelente texto
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=bkIsX5G8WyQ