segunda-feira, 14 de maio de 2018

Fafe sem jericos é como o Largo sem árvores

Foto Hernâni Von Doellinger

Vou direito ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Olho para os destaques das Feiras Francas de Fafe deste ano e o que é que vejo? Vinhos e petiscos, rusgas de concertinas, cavaquinhos, bombos, ranchos folclóricos, concurso pecuário e chega de bois. Também Marante mailos Diapasão e corridas de cavalos a passo travado. Passo travado. Só faltava dizerem-me que as cavalgaduras vão de salto alto e concorrem ao Vestido de Chita, no Jardim do Calvário. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe, tempos e sítio de fartura, não consigo perceber...
Até parece: deixei a terra e agora não há burros em Fafe? Se for preciso, eu volto.

Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta e onde este ano terminará a Volta ela própria. Partiam em frente ao Café Império e iam fazer inversão de marcha na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha um bigode de Dom Quixote e uma burra que se chamava A Burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, ajeitando a quilhoada, cofiando a bigodaça e limpando os queixos às costas das mãos sebentas, por esta ordem, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que A Burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: A Burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada. E tenho a certeza de que a malta nova havia de divertir-se à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: não sei o que se passa com Fafe, que lhe deu para inventar tradições, como se as não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de "cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal vestidas - estão lá só e sempre os quinze do costume. Então onde está Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe e a substitua por um pedregulho espetado no coração da cidade. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha das suas árvores e tosquie o Largo por causa do ciclismo. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros e procure javalis. Como se alguém que de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, para não parecer mal aos senhores de fora e para parecer bem na televisão. Enfim, uma jericada...

P.S. - Como prometido, cá estou. Todos os anos, por esta altura, pró-Justiça de Fafe e em lembrança dos nossos burros, que são uma fartura, Deus os abençoe e guie pelo bom caminho...

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