domingo, 22 de abril de 2012

A Festa da Bomba


Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Hoje sei que Fafe tem duas festas de considerável importância local: a Senhora de Antime, ainda e sempre, e essa recente e extraordinária festa da cultura que são as Jornadas Literárias.
Para que não pensem que a minha memória exagera, deixem-me contar-lhes o seguinte: no nosso Santo António até tínhamos altifalantes, que o Zé da SIF arranjava e aquele pedaço de Fafe regalava-se a ouvir o "Tango dos Barbudos", o "Fado das Trincheiras" e o "Je T'Aime Moi Non Plus", que era proibido e eu nunca percebi o que é que estava ali a fazer. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver.
Os discos deviam ser poucos. O "Tango dos Barbudos", parece que lhe estou a ver a capa, tocava vezes sem conta e o "Se eu morrer na batalha só quero ter por mortalha a bandeira nacional", do Fernando Farinha fardado, fazia a rua inteira chorar, não sei se por causa do Zé Maria já estar na guerra. Dessa parte não me lembro bem. Lembro-me é que nem com o "Je T'Aime" se me arrebitava o pirilau, também não sei se por medo de ir preso ou por o meu corpo ainda não ter idade para semelhantes acrobacias.
Tínhamos foguetes também. Eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos onde está agora escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me: na verdade, íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes, era de arrebenta. Só de altifalantes eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos, e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete de mais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam bem aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Quero acreditar que nunca mais na vida tive um pensamento tão acertado.

(Os Bombeiros de Fafe fizeram 122 anos na passada quinta-feira. A Festa da Bomba é hoje.)

10 comentários:

  1. Dava-lhe um beijo no cú!

    j.

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    1. Muito obrigado pela visita e pelo comentário.
      Deita-te cedo, pá! Abraço,
      h.

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  2. Grande texto, amigo Hernâni! Obrigado por mais uma destas tuas memórias que hão-de dar um livro obrigatório para todos os fafenses e não só!
    E agora, para teres muitas visitas e comentários neste teu blog, vais até à rua farejar um acidente com um carro da polícia ou, se tiveres sorte, outra ambulância do INEM.
    Grande abraço e parabéns!
    Nestes
    PS: ao lermos estes teus textos parece que estamos a ver um filme italiano tipo Cinema Paraíso! :-)

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    1. "Vais até à rua farejar". Ainda não perdeste o ofício! Obrigado, Nestes, pela visita e pelo comentário. O Senhor Peixoto perguntou por ti e manda-te cumprimentos. As moelas de coelho continuam incomparáveis. Abraço,
      h.

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  3. Pois é caro Primo Nane, hoje foi a festa da nossa Bomba, e como te tinha dito consegui ter a tal lembrança que te falei há dias. Coseguimos por o nosso Dodge a desfilar ( estava guardado com o motor partido há cerca de 9 / 10 anos ). Mas voltando á festa, que lindo que é ver aqueles capacetes amarelos e os machados ao ombro. ao ler o que escreveste vejo-me na tua pessoa, pois o toque dos clarinsda-me cá um nó na garganta e la vêm as lagrimas pelo rosto ( tambem sem saber porque, deve ser de " doença familiar ). Os Bombas tiveram bem presentes e representados, pois ao lado do teu irmao Nelo tive exactamente essa ideia que aqui te digo :" A nossa casa da Bomba estava linda e alegre! "
    Por fim agradeço os teus textos a recordar os teus tempos que passar5am depois a ser meus e tenho fé que nós, OS BOMBAS, seremos sempre recordados como hoje fui pelo Sr. Paulo Ceguinho, a Dª Etelvina, o Nosso Menino ( hoje comandante da Associação ), o chefe Laranjeira e toda a sua familia bombeira, o filho do Sr. Costa do Assento, o chefe " Mata-boi ", o Armando Rogerio ( Perrinha ),o Natal Higino, o Sr. Cunha Carteiro, o Sousa da Caixa ( hoje pertencente á Direcçao), o Osvaldo Batista ( filho do Batista de Antime e pai do hoje 2º comandante ). Por fim tambem te devo dizer que todos os outros conhecem a historia dos NOSSOS na Bomba, pois tambem cumprimentam um Von Doellinger na festa de hoje como sendo um representante de algums herois da Bomba. Queria marcar contigo uma ida lá para veres que falo verdade, alias, a obra dos NOSSOS esta lá por isso nunca seria preciso mentir.
    Um forte abraço e continua a recordar-me os teus tempos de Fafe e da Nossa BOMBA,faz-me bem!
    Miguel Von Doellinger

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    1. Um abraço, Miguel. Vejo que passaste um domingo em cheio. Obrigado pela visita e pelo comentário.

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  4. Mais um texto de se lhe tirar o chapéu! Ou, no caso, o capacete!
    Grande abraço,
    P.

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  5. Como o mundo é pequeno!Não é que hoje ao pesquisar aqui umas coisas venho encontrar algo e palavras que a mim muito me diz.Para já me vou dar a conhecer,fui motorista dos Bombeiros a(Bomba) como diz aqui,pessoalmente amiga do peito de todos que aqui fala,entre os quais o Zé Maria meu cunhado.Por isso direi o mundo sempre a nossos pés.Guardei o link desta página para ficar com os laços desta casa que nos alimenta a vida sempre que a sirene toca.Abraços fraterno e Bombeiristico. Maria Elisa

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