sexta-feira, 10 de dezembro de 2021
O amigo dos animais
O cão, sem deixar cair
Todas
as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de
sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego,
haviam de ver. O homem atira a bola de ténis e o cão, dez-réis de cão,
rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como
uma mola, abocanhando-a, à bola, ainda no ar. Cão danado para a
brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E
o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e
ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que
quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a
língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao
contrário".
Um
quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos
animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão
da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e
definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão
que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um
perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.
Todas
as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por
isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do
cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia
"Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex,
eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso,
resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o
caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho,
secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó
corno!, fode-me sempre..."
O
cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para
mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande
estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o
açaime ao homem e levou-o para casa.
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Junho de 2013, sob o título "O homem e o cão (e vice-versa)".
Antes que seja crime
Reuniram-se em segredo - disfarçados, desconfiados, culpados e urgentes. Uma candeia sigilosa e tremente alumiava o silêncio. Sentaram-se à volta de uma generosa vitela assada à moda de Fafe, clandestinos antes do tempo. Antes que seja crime.
Matador
Nós os animais
No tempo do Primavera Sound, que a pandemia veio aliviar, há também camiões, guindastes e contentores, dezenas de geradores, megapalcos, supertendas, barracas, tonéis de cerveja cheios e escorropichados e cheios e escorropichados vezes sem conta nem medida, toneladas de lixo e pés, decibéis à solta, ameaços de terramotos, aluimentos, quem dera que não chova, Deus queira que não caia. Há vedações e avisos, pedimos desculpa pela interrupção, o parque segue dentro de dias. Quem estiver mal que se mude, prometemos deixar tudo como estava.
Não sei é se aquele fauna toda, que tem naturalmente os seus direitos, foi devidamente notificada.
Má sorte ser-se puta
A notícia espalhou-se como fogo em mato seco: um automobilista acabara
de atropelar mortalmente uma pega, toda esmigalhadinha. Assassino!
Juntaram-se imediatamente o PAN, Os Verdes, a Quercus, a Zero, a
Protectora dos Animais, a Greenpeace, dois dirigentes da Juve
Leo, um dos Super Dragões, sete das inexistentes claques do Benfica,
trinta e dois indignados das redes sociais, quatrocentos influencers, seis
cães que tinham levado os donos a almoçar fora e vários elementos do
movimento cívico e espontâneo SOS Grilo Careca de Asa Redonda e Perna
Curta, que está muito bem organizado para estas emergências. Rodearam o
carro, arrancaram o automobilista cá para fora e encheram-no de
carolos e caneladas, para ele aprender. Só não chegaram ao linchamento
porque, regra geral, desconheciam a palavra, e os poucos que a conheciam
de vista confundiam-na com lixamento e achavam que, para lixar o
energúmeno, os carolos e as caneladas já estavam muito bem.
Apareceu a GNR. A autoridade aproveitou para também molhar a sopa,
quer-se dizer, o automobilista caiu sozinho sobre duas secretárias e
esbarrou-se sem ninguém lhe tocar num armário ali no meio da via, e,
posto isto, foi-lhe ordenado que se explicasse. O automobilista
explicou-se. E convenceu. O PAN, Os Verdes, a Quercus, a Zero, a
Protectora dos Animais, a Greenpeace, os dirigentes da Juve Leo e
dos Super Dragões e das inexistentes claques do Benfica, os trinta e
dois indignados das redes sociais, os quatrocentos influencers, os
seis cães da vida airada, os espontâneos do SOS Grilo Careca de Asa
Redonda e Perna Curta e a própria GNR fartaram-se de pedir desculpas ao
homem e até lhe deram os parabéns e os primeiros-socorros. Tudo não
passara de um pequeno mal-entendido, erro de comunicação. Afinal o
automobilista não tinha morto uma pega ou Pica pica melanotos, seria uma tragédia, tinha apenas atropelado mortalmente uma pega meretriz de beira de estrada, Femina sapiens solteira e mãe de três filhos, toda esmigalhadinha. É chato, mas são coisas que acontecem...
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Maio de 2016.
Coitadinha da lagosta...
Os principais animais de tiro são os cavalos, as mulas e os burros, os bois e as vacas, os ónagros, os camelos e dromedários, os iaques, os búfalos de água, os lamas, os alces e as renas do Pai Natal, os elefantes, os portugueses, as avestruzes e... os cães. Os cães: que antigamente tiravam só praticamente no Alasca e para o cinema, e agora, na marginal do Porto e Matosinhos, também puxam por jovens ciclistas e skaters radicais e manifestamente preguiçosos.
Outros animais de tiro, mas por diversa razão, são, aqui que ninguém nos ouve: o coelho-bravo, a lebre, a raposa e o saca-rabos; a perdiz-vermelha, o faisão, o pombo-da-rocha, o gaio, a pega-rabuda e a gralha-preta; o pato-real, a frisada, a marrequinha, o pato-trombeteiro, o marreco, o arrabio, a piadeira, o zarro-comum, a negrinha, a galinha-d'água, o galeirão, a tarambola-dourada, a galinhola, a rola-comum, a rola-turca, a codorniz, o pombo-bravo, o pombo torcaz, o tordo-zornal, o tordo-comum, o tordo-ruivo, a tordeia, o estorninho-malhado, a narceja-comum e a narceja-galega; o javali, o gamo, o veado, o corço e o muflão.
Para não saberem que vão morrer, a estes animais de tiro chamam-lhes espécies cinegéticas. É preciso que se note que o melro saiu da lista dos abatíveis em 2011, por ordem de Daniel Campelo, o do queijo, então secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural. Uma medida que seguramente marcou um extraordinário mandato, posto que breve.
Já os caracóis são obviamente animais de tiro porque puxam pela própria casa, andam com a rulote às costas (o que não acontece com as primas lesmas, essas viscosas sem-abrigo e nudistas descaradas), mas, pelos vistos, gostavam de ser ainda mais. Em 2015, uma campanha em nome destes simpáticos moluscos gastrópodes terrestres foi lançada pelos seus representantes legais, uma rapaziada bem disposta que sobretudo não quer que eles, os caracóis, sejam cozidos vivos. Seria, portanto, de lhes enfiar um balázio na cabeça, aos caracóis como aos garranos, e, então sim, metê-los na panela. Aos caracóis.
Com a coitada da lagosta é que ninguém se importa. Se calhar por ela ser podre de rica e pelar-se por uma sauna bem suada. Invejosos de merda...
Era uma vez um cão
O cãozinho da mamã
A madama tinha um cão ao colo e, entre as pernas mas ao nível dos sapatos de tacão altíssimo, uma bolsa em poliéster com rede e design italiano.
Era uma madama jovem, bela e produzida, esperável ao volante de um
Porsche Cayenne e a lamber o telemóvel, e não ali, no banco do autocarro
e a ser lambida pelo cão. O cão era a condizer: sucinto, peludo, de
marca, transpirando pedigree por todos os poros. Uma fofura.
Sentia-se-lhes
um orgulho mútuo, percebia-se uma relação muito bonita. Que ternura! A
madama babada beijava o lingrinhas barbudo e o lingrinhas barbudo e
babado beijava a madama babada. Beijavam-se na boca. Lambiam-se, se não
me engano. A madama falava
xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã
e o
xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã
não dizia nada mas apenas por ser cão e por gostar de festas nos
genitais e não querer interromper a coisa. Realmente só lhe faltava
falar, ao cão, como muito bem observou o autocarro em coro, era o 500, e
até eu me comovi, eu que, como sabem, mantenho um ancestral e
desagradável contencioso com os canídeos de uma forma geral, e cuido que
a culpa não é minha. A cena deu-me também um bocado de tesão.
A madama apeou-se na paragem de Matosinhos Praia, sempre com o cão ao colo, sempre xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã. Com a mão de vago, a madama pousou no passeio a bolsa em poliéster com rede e design italiano, abriu-a e retirou de lá de dentro um bebé de meses. Menino, vestia azul. Também era giro.
P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Abril de 2015. Hoje, 10 de Dezembro, é Dia Internacional dos Direitos dos Animais. Ou dos Direitos Animais.