domingo, 25 de maio de 2025

Jardins perdidos

Traz uma árvore também
Era uma localidade um bocadinho estranha, naturalmente austera porém exuberantemente moderna e cosmopolita. Nas suas principais entradas, a autarquia colocara frondosas tabuletas que avisavam os forasteiros: "Se quiser sombra, traga a sua própria árvore".

Os jardins era uma coisa que existia antigamente. Como os castelos, as pinturas rupestres, as pirâmides e assim. Era uma coisa muito antiga, do tempo dos romanos, basta ver que Deus, quando criou o mundo, o mundo era um jardim, mais ou menos como a Madeira, mas chamava-se Éden, como o velho cinema de Lisboa, ou Jardim do Éden ou Jardim das Delícias ou Paraíso Terreal ou simplesmente Paraíso, como o novo cinema de Palazzo Adriano. O plural de Éden é édenes, convém não esquecer.
E corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E foram. Adão e Eva cometeram o pecado original e deu na merda que deu. Até hoje.
Eu sou desse tempo. Do tempo em que ainda havia jardins. Não se sabe bem se foi por causa dos traques dos dinossauros ou derivado ao impacto de um asteróide gigante, eventualmente do tamanho de uma cidade, a verdade é que coisas antigas como os castelos, as pinturas rupestres, as pirâmides, os jardins e assim foram regra geral varridas da face da Terra, restando hoje em dia apenas algumas amostras assumidamente raras e razoavelmente arqueológicas.
Para que a Humanidade tenha pelo menos uma vaga ideia de como era o mundo em Portugal antes do apocalipse é que Portugal descobriu Vila Nova de Foz Côa, por exemplo, e Fafe mantém às vezes de porta aberta o vetusto Jardim do Calvário, que nos seus tempos mais pré-históricos até teve crocodilos, e bem barulhentos, isso toda a gente sabe.
Os jardins antigos, os jardins entretanto desaparecidos, foram substituídos por urbanismo, é assim que se chama a nova coisa. E como é que isso se fez? Como é que isso se faz?

Desta maneira simples. Pegue-se num bom pedaço de terreno relvado, com árvores e com sombras, e arrase-se tudo. O terreno, a relva, as árvores e as sombras. O urbanismo não quer sombras. Encha-se o espaço de alcatrão, cimento, placas de granito e mármore, pedregulhos aparelhados fazendo de conta de bancos e estacas de alumínio a imitarem árvores ou, quem sabe, a imitarem esculturas muito inteligentes e indecifráveis, de preferência com esguichos mas sem água derivado à seca e à poupança. Isto é urbanismo! Pegue-se no jardim da cidade, arranquem-se as flores e os arbustos, envenene-se o verde, construam-se desertos em forma de praça e mandem-se as pessoas para casa. Isto é urbanismo! Pegue-se num monte, sítio de memórias, de brincadeiras da infância, santuário de locais secretos e míticos, reserva de saúde e natureza, e corte-se-lhe a crista, cape-se, desarborize-se, desfaune-se, terraplene-se, enxote-se a bicharada, cale-se o incómodo do chilreio dos pássaros, ergam-se moradias de preferência com feitio de caixote, altas, pegadas e muitas, fechadas, e muros e portões e alarmes e estradas e carros e escapes e buzinas e estampanços e atropelamentos e antenas parabólicas e fios e postes de alta ou remediada tensão. Isto é urbanismo!

Resumindo e concluindo: roubam-nos os jardins e dão-nos esplanadas desamparadas e escaldantes, arrancam-nos as árvores e impingem-nos guarda-sóis publicitários. E, se nos queixamos, dizem-nos que não percebemos nada do assunto. Mas qual assunto? Viver?...

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional dos Jardins.

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