sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Comer 243 sardinhas é muito?

Comi 243 sardinhas assadas! Isso, duzentas e quarenta e três. Não foi para o Guinness, portanto não as comi todas de uma vez, mas ao longo da época de 2022, que dei por encerrada faz hoje oito dias. E como é que eu cheguei a esse número tão quadrado sem ter de as contar uma a uma? É fácil. Logo que entrados no tempo delas, sexta-feira ao jantar é dia de sardinhada cá em casa. Sardinhas, salada de pimento vermelho assado, azeitonas, broa e vinho tinto, mais nada. Este ano abrimos as hostilidades no dia 29 de Abril e fechámos a loja, como já disse, a 25 de Novembro. Foram trinta e uma sextas-feiras. Se a estas tirarmos quatro, derivado ao mau tempo, a feriado ou a santo popular, ficamos com vinte e sete sextas-feiras limpas. Tendo em atenção que eu como, em média, nove sardinhas assadas por refeição, é só fazer as contas, como dizia o Guterres, e dá 243. Sim, duzentas e quarenta e três.
Sempre sardinhas aqui do nosso mar, mais pequenas mas mais saborosas, e vou buscá-las praticamente ao barco. Elas não se cansam a esperar por mim. Eu é que espero por elas, vivinhas que até metem raiva. E este ano as sardinhas foram outra vez excelentíssimas - abençoado defeso, que no-las devolveu à moda antiga.
Os antigos diziam que Maio, Junho, Julho e Agosto são os melhores meses para comer sardinha assada, mas não são. Como eu costumo lembrar, os antigos sabiam tudo e morriam muito. As sardinhas daqueles meses, dos meses sem "r", apesar de geralmente comestíveis e até agradáveis, ainda não estão maduras. A lengalenga popular é engodo para apedeutas. Eu também aprecio a novidade, mas, em bom rigor, as melhores sardinhas estão guardadas para Setembro e Outubro, aguentando-se às vezes até Novembro. Eu monitorizo-as sexta a sexta, e faço por parar ainda em bom, prevenindo o indesejável porém fatal desgosto. Foi o que fiz mais uma vez. Parei. Agora, sardinhas assados, só para o ano. E entretanto arquivo na memória um gosto bom que faço render contando histórias de crescer água na boca. Assim que tal, Abril ou Maio, os meus amigos do mar hão-de avisar-me para a urgência da retoma...

Uma vez, na peixaria da Dona Augusta, seria exactamente mês de Abril aqui há uns anos, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela minha peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". Por acaso não estavam, naquele ano de colheita medíocre, lembro-me bem, mas a peixeira tem de fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Nós comíamos as sardinhas acomodados às três pancadas ao lado do assador, no nosso quintal da casa de pedra da Rua do Assento. Seriam poucas as sardinhas, mas a verdade é que davam para partilhar com os vizinhos e ninguém ficava com fome.
Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia eu e uma solha metemo-nos numa luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.

Descobri recentemente que a minha peixeira, que é a melhor peixeira do mundo, a impagável Dona Augusta, tem pelo menos um cliente que vem propositadamente de Fafe. Encontrei outro dia o Toni, que, contou-me, todas as terças-feiras vem buscar peixe para o sobrinho e, já agora, para o meu amigo Tónio Cá Te Espero, que tem tasco de categoria na Recta, que parece que se chama Taberna do Cates, ali à beira de virar para a casa da minha irmã, e de momento, felizmente, também da minha mãe. E eu, palavra de honra, quase me comovi ao saber disto.
E agora, quer-se dizer. Não sei se repararam lá em cima, mas eu não como sardinhas assadas por ocasião dos santos populares. Não como, porque geralmente não são das nossas, nem frescas. Não como, porque não gosto de balbúrdias, por um lado, nem de me meter em filas, por outro. Não como enfim, por uma questão de princípio, devido à indecência do preço a que costumam ser vendidas nesses dias. É. A procura estraga a oferta. Pelo São João, já há alguns anos, alugo um jacto particular, pego na mulher e vamos ao Maine, EUA, comer lagostas à ganância. Sempre nos fica mais em conta do que as sardinhas...

P.S. - Ontem foi Dia da Restauração. Aqui fica a minha singela homenagem ao sector.

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