segunda-feira, 25 de abril de 2022

Chorei por Marcelo e depois ri-me

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes. Eu nem queria acreditar. Os meus olhos viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me em choro. Chorei de raiva. Como se atreviam?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem preparada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra a manifestação de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
"Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia modesto Marcelo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas! E depois falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, agora de auto-satisfação patriótica, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho devia ser de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu não sabia nada.

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Agosto de 2020. 

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