Durante
muito tempo cuidei que se chamavam assim por causa das vacas que
ficavam cá fora presas pela soga às argolas da parede, ruminando uma
pouca de palha ou erva, enquanto os donos enchiam a mula lá dentro.
"Casa de Pasto - Bons Vinhos e Petiscos", dizia a tabuleta, geralmente
de madeira, numa letra desenhada às três pancadas e desbotada pelo uso
do olhar. Já lá vão tantos anos, mas juro que até hoje ainda não
encontrei coisa mais linda de se ler.
Nas
décadas de sessenta, setenta e um cheirinho de oitenta do século
passado, a vila de Fafe era o céu na terra para os devotos dos comes e
bebes. Tascos, tabernas, casas de pasto, pensões e outros arraçados de
restaurante, havia-os de vários feitios e para todos os gostos e bolsos,
quase porta sim, porta não. O Escondidinho, o Alberto Coveiro, a
Silvina Monteiro, na Rua Montenegro, o Sanica, o Marinho, o Guarda-Fios,
o Vale D'Estêvão, o Manel Bigodes, da Granja, o Quinzinho e o Tanoeiro,
ambos em Santo Ovídio, a Rapa e o Ferrador, os dois na Feira Velha, o
Feira Velha, na Rua Visconde Moreira de Rei, o Jaime Biró, da Rua de
Baixo, o Toninho da Ponte do Ranha, o Neca do Hotel, o Toninho Pires, o
Zeca Batata, o Magalhães da Olímpia e o Matazana, só estes são mais do
que as estações de uma via-sacra e havia quem entrasse para molhar a
palavra em todos eles. Religiosamente.
Mais ou menos no meu raio de acção, centrado ali no Santo Velho, havia
ainda o Peludo, o Zé Manco e o Paredes, mesmo ao pé da porta, o Chupiu,
as pataniscas do Miranda, a Quiterinha, ou Texas, a Adega dos Vasinhos e
as mãos de ouro da Juditinha, o vinho branco e bacalhau frito (há lá
melhor mata-bicho!) no Lameiras da Rua de Baixo, o bolo com sardinhas da
Brecha, a Dinâmica, o insubstituível Nacor, a Peninsular, o Zé da
Menina, que também fazia sandes da famosa vitela e aviava umas
quartilhadas avulsas fora do horário das refeições, a Esquiça, que ainda
faz das tripas coração, a Adega Popular, ou Fernando da Sede, e o
Manel do Campo, onde uma vez o meu querido tio Américo, que me iniciou
nestas vidas, me levou a comer um arroz de ervilhas de quebrar com
fanecas fritas que estava de se lhe cantar um Te Deum.
O
Manel do Campo propriamente dito era um homem imenso, o homem mais
gordo do mundo aos meus olhos de miúdo. Mas, de casa para o trabalho e
do trabalho para casa, ia e vinha de bicicleta e suspensórios, naquela
pedalada lenta e pesada que parece que estás aqui estás a malhar,
cantando a plenos pulmões, numa voz grave, o "Marina, Marina, Marina" do
Rocco Granata. Quem se lembra, que levante o braço.
Os
tascos e casas de pasto de Fafe eram lugares de culto. Instituições de
serviço público, monumentos de interesse nacional, património da
humanidade. Ali praticava-se a fraternidade. Ali, do doutor ao
sapateiro, como então se dizia, com os queixos numa caneca que passa de
mão em mão, os homens (e as mulheres, que também as havia) eram todos
iguais. Eram irmãos. O coitado que levava a caneca ao fim, mandava vir a
próxima...
Nenhum recém-chegado começava a beber sem antes erguer a caneca aos presentes:
- São servidos, meus senhores?
- Estamos no mesmo - respondiam, à volta.
Este cerimonial, creio, ainda se pratica.
O
vinho, a qualidade do vinho, era a pedra-de-toque para o sucesso de uma
casa. Um sucesso traidor, de ida e volta. Sabia-se que em certo sítio
havia pipa nova, de pinga de estalo, um "assombre", e era a invasão. A
pipa chegava às últimas e todos lhe viravam costas, mesmo antes de ela
exalar o derradeiro suspiro. Os apreciadores procuravam novo poiso,
onde a história de amor e traição se repetia.
Era
inevitável. Claro que também se apanhavam umas cardinas. E de caixão à
cova. Eu não vou dizer nomes, mas podem acreditar no seguinte: por
causa das coisas, havia uns bebedores muito conhecidos e prevenidos
que, consoante os casos, tinham burro, bicicleta e até motorizada de
tal maneira amestrados que podiam ir para casa de olhos fechados. E
iam. Os bichos, incluindo os de duas rodas, já sabiam o caminho...
Isto é a minha memória, a memória dos meus. E a minha homenagem sumária e
porque sim. Os tascos da minha terra têm uma história e histórias que
deviam ser contadas ao detalhe por quem as saiba procurar e contar,
com o rigor e a graça que os ilustres nomes dos tasqueiros de antanho
justificam e merecem. No meio de tanta treta que se edita, patrocina,
apresenta e promove em Fafe, ora cá está um livrinho que até eu era
capaz de ler. Enquanto espero, sentado, venha mais um quartilho para a
mesa do canto, e era a continha, se faz favor...
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