domingo, 13 de junho de 2021

Um tostãozinho prò Santantónio

A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua propriamente ditos, já a contar com o Roger Moore na televisão a preto e branco do café Peludo. Evidentemente que, para os devidos e legais efeitos, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril, curiosamente à moda do Porto, onde 9 de Abril costuma dizer-se Arca d'Água. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido chamar-lhe assim, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.

O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres iam trabalhar para a Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, Fábrica assim com maiúscula, por consensual antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e tecidos.

A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista, como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não.

A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então cientificamente plano, a descair para o Picotalho e delimitado em cima pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita. Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão. Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara, tínhamos o ceguinho das quartas-feiras e a Mocha com sardinhas, fanecas e chucharros, indesmentíveis chucharros.
Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o "Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira tília. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos padeira, azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos. Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Queimávamos o Pai das Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas lavras do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente.

O nosso Santo António era de arromba, coisa constada, até botávamos altifalantes, que o Zé da SIF desenrascava no emprego e instalava acrobaticamente lá bem na crucha da tília do meio. E como por milagre aquele pacato pedaço de Fafe enfeitava-se de festão desbotado pelo desuso, alumiava-se de gambiarras cedidas pelo meu avô da Bomba e regalava-se a ouvir de manhã à noite o "Tango dos Barbudos", o "Fado das Trincheiras" e o "Je T'Aime Moi Non Plus", que era proibido de dar na rádio e eu nunca percebi o que é que estava ali a fazer aquela espécie de música gemida num arraial praticamente doméstico, ainda por cima incomodando-me penosamente o andar. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Sr. Agostinho e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver.
Os discos é que deviam ser poucos. O "Tango dos Barbudos", parece que lhe estou a ver a capa cheia de fidéis castros pós-modernos, tocava vezes sem conta e o "Se eu morrer na batalha só quero ter por mortalha a bandeira nacional", do Fernando Farinha fardado, punha a rua inteira com uma lágrima no canto do olho, num inconsolo patriótico que só visto. Não sei se por causa do Zé Maria já estar na guerra ou se por causa dos que voltavam da guerra previamente enterrados em caixões, como aconteceu com o Zeca Lopes, que também era dos nossos e teve direito a salva de tiros no cemitério.

Tínhamos foguetes também. E fogueteávamos a bom foguetear, é preciso que se note. Eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade: íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido. E nós morremos gota a gota, atropelados pelo falso vagar do tempo.

P.S. - A partir de um texto publicado originalmente no dia 22 de Abril de 2012.

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