A moda é nova, mas, em Portugal, o fado, a dieta mediterrânica, o cante
alentejano, os chocalhos e a olaria preta de Bisalhães já tinham sido
elevados aos píncaros do Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Seguiram-se a falcoaria, a louça de Estremoz e os Caretos de Podence,
até ver. Fixemo-nos, porém, na falcoaria. A falcoaria, numa das suas
definições mais acessíveis, é a arte de treinar e cuidar de falcões e
outras aves de rapina para a caça. Os falcões e colaterais contrafacções
caçam, matam e comem, em geral, outras aves e pequenos quadrúpedos que
não têm lóbi na UNESCO. Está certo: a UNESCO é uma organização das
Nações Unidas que visa contribuir para a paz e segurança no mundo
mediante a educação, a ciência, a cultura e as comunicações. Com a
falcoaria ficámos irremediavelmente lançados. Eu, por mim, penso agora
nos sapateiros, nas mulheres-a-dias, nos falsos licenciados, nos
periquitos, nos tocadores de punhetas, nos perdigueiros e, andava com
esta ferrada há que tempos, nos furões.
Por exemplo, as Janeiras, os Reis, as novenas, o terço e a bênção do Santíssimo. Porque não? As marchas de Lisboa e as rusgas do Porto e o Pai das Orelheiras e o carnaval de Ovar e as "Velhas" da Terceira e as adufeiras de Monsanto e a Justiça de Fafe e os zés-pereiras e os cabeçudos e os gigantones. Ou a cantiga no duche, ou a lengalenga do avô, ou a arenga de bêbado, ou o apita-o-comboio, ou o atirei-o-pau-ao-gato, ou o areias-era-um-camelo. Ou o canto pimba, ou o canto neiro. Porque não?
Por exemplo, os ranchos folclóricos, os conjuntos típicos, a Maria Albertina e o António Mafra, os grupos excursionistas, os motoclubes e as motosserras. Ou as bandas de música. Porque não? Ou os bandos de malfeitores. Ou os submarinos e os bancos, os salgados e os doces, da alheira de Mirandela ao pastel de Belém. Porque não?
Por exemplo, o manguito do Bordalo. Ou o caralho das Caldas. Porque não?
Por exemplo, o assobio. Porque não?
Com assinalável pertinácia, Portugal mete os dedos à boca e vomita património e material da omaninade por todos os lados. Um destes dias, sem darmos fé, estamos todos condecorados. Da cabeça aos pés.
P.S. - O Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro apareceu pela primeira vez no jornal satírico "Lanterna Mágica" no dia 12 de Junho de 1875.
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