quarta-feira, 13 de maio de 2020

Simplesmente João

Se há um consenso nacional é este: de presidente da câmara para cima, os nossos políticos são todos doutores. Doutores ou engenheiros, mas doutor engloba tudo, porque dá muito mais jeito e tem outro sainete. E como gostam eles de ser doutores, mesmo que não sejam. E como gostam eles que lhes chamem doutores, e nunca se desmancham. E como gostam eles de se tratarem uns aos outros por "ó doutor", naquele mundo que é só deles e de onde não conseguem sair. E, ipso facto, o primeiro nome deles fica a ser Doutor, não há volta a dar.
Mas conheci um que destoava, e apenas um. Uma honrosa excepção, de que hoje me lembrei, nem sei bem porquê. Para que conste, chama-se João Soares, tem 62 anos, é ex-eurodeputado, ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ex-candidato à liderança do PS contra José Sócrates, deputado à Assembleia da República e presidente da Assembleia Parlamentar da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
Às vezes, por dever de ofício, tive de lidar com a fauna política. E quando contactei João Soares com o, achava eu, indispensável "senhor doutor" na ponta da língua, levei logo para tabaco (se não me engano, o assunto até era mesmo esse, tabaco). "Não me chame doutor, eu não sou doutor", interrompeu-me ele, para princípio de conversa. Fiquei à rasca. - Ó diabo, já fiz merda. O gajo será engenheiro? Professor doutor? Professor doutor arquitecto? - pensei. E disse: - Mas se não lhe chamo doutor, então como é que eu o trato, senhor doutor?
A resposta que então recebi, e que me serviu de emenda daí para a frente, foi exactamente esta: - João. Trate-me por João. É o meu nome.

(Por outro lado havia aquele conhecido presidente de câmara aqui da região que se fazia e faz passar por engenheiro e não era nem é engenheiro. Mas assinava Engenheiro e impunha que lhe chamassem Engenheiro. Investiguei a coisa para o jornal 24horas e contactei a autarquia solicitando esclarecimentos. O assessor do Senhor Engenheiro foi incumbido de me pagar um almoço para que a notícia não saísse. A notícia não saiu porque o meu jornal me pôs no olho da rua...)

P.S. - Publicado originalmente (e sem o último parágrafo) no dia 1 de Fevereiro de 2012. Entretanto o João deixou de ser deputado do PS e presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE, passou como uma bala por ministro da Cultura e tem 70 anos. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a Redacção do Porto, a sangue frio e pelas costas. Eram os primeiros dias de Maio quando nos despejaram no desemprego, e podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.

2 comentários:

  1. Conheço bem essa gentinha. Gentinha que, para se sentir alguém precisa do contrapeso Doutor. Mas(acho que ambos conhecemos alguém que em "O PRIMEIRO DE JANEIRO" era Sub-Director (estou a falar de Manuel N. Cabral). Encontrei-o certo dia na Cidade. Olá Doutor, como está, responde-me ele com um sorriso Olá Gaspar, faça-me um favor, trate-me apenas pelo nome; é que doutores há muitos, senhores é que nem por isso. Bom dia Hernâni.

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