Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O cortejo desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e quando dou fé Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal. O esquisito, o inexplicável, é que eu também lá estava. A um metro do homem. Eu fui atrás dele e não sabia.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim, que sou um cínico.
A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me vinte anos mais tarde, nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de que Portugal deve ter memória. E com Mário Soares, que se borrifava cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a concorrência, Soares contava histórias, contava História em pequenos auditórios vagamente frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em graus diversos. E eu regalado. O meu jornal, que era o estrambólico 24horas, mandara-me à procura das proverbiais gafes e partes gagas do velho leão, então já com uns bem vividos 82 anos. Eu consolei-me com o resto.
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